26 de dez. de 2016

relógio insano






o relógio do cupido
é insano

quando te achou
esse moleque
perdeu a hora

o rumo
o prumo
as flechas
o alvo

e agora
rouxinóis e cotovias
dançam numa mistura
confusa

– importa o pássaro?

se anuncia dia
ou mais uma noite

5 de dez. de 2016

cinzelada



ergui essa escultura
cinzelada pelo medo
lavrada pelo grito

sem rumo, vazio


tua voz entalha essas falhas
santos escapam pelas beiras
ouvidos moucos me traem
tua pele rouca rasga a noite

navegamos perdidas
estátuas de sal
apuradas em pele sangue
e avaria

Para Camile.


http://contos-semnome.blogspot.com.br/2012/03/camille-claudel.html

4 de dez. de 2016

fita de möbius


Por tudo que fomos
Sem confusão
Aceita

Não
Não é despedida
É cansaço

Infinito e inútil
Cansaço

A canção me sopra
Sempre que você me despede
Minha alma se despe
Eu morro um pouco

É fácil
Se não tenho nada
Nada
é o bastante

cansei
não quero mais
tuas impossibilidades

Quando afinal te esqueço
E mal vejo teu sorriso
Em meio ao lusco-fusco

Confuso
Você me resgata
Ondas de carinho
Engolem-me
Atropelam-me

E descubro sem susto
Que o tempo é como a fita de möbius
E mais uma vez tropeço
Prendo-me
Enrosco-me
Nas tramas do passado
*imagem : Time-in-a-Bottle ©2007-2009 =starlightblood

16 de nov. de 2016

ARCANO 16



o vento brinca com a árvore na janela
e tua voz vem riscar a vidraça


é tão tarde


quando sussurras teus versos
em rimas surreais
que deslizam pelos meus sonhos
junto com umas lágrimas descabidas


é tão tarde


para riscar peles e vidraças
até os mortos sussurram
longas árias
em cadencias insanas
enquanto você chora
em rimas perfeitas
murmura histórias arcanas


versos
música
hosanas e teu corpo


é tão tarde


eu sussurro
os mortos mentem
em línguas mortas
enquanto a tua desliza
no céu da boca
segredos estelares
bobagens seculares


mentiras de vento e folha
que eu finjo não ver
nesse gozo esquecido
perdido entre as frinchas da noite
eu entendo
tudo, ou quase tudo,
de tudo que nunca entendi


meus olhos ardem
e te esquecem um pouco mais
fecho o livro sem pressa
guardo o poema junto aos meus
que dormem sozinhos


teus mortos sussurram
é tão tarde 


Rosa Cardoso

alquimia



É tarde! Estirada ,
a noite sussurra intentos
nesses sonhos vagos

Tua reticente cilada
escora no céu da boca
largos esteios infundados
e desliza pelas abóbadas

Ajoelhada desabotoo
inveteradas promessas
elas exalam teu perfume
e as notas perdidas cantam
a mesma canção embolorada

Um minueto saliente
lançando palavras-raízes
nessa lua minguante
danço nos escombros
desses velhos achados
onde guardo com cuidado
o passado
embrulhado em seda azul



Rosa Cardoso

4 de nov. de 2016

eva, lilith e a serpente

eva sussurrava entredentes
medos e pecados deslindados
nos vastos
entre tantos devastados

a serpente num canto sibilava

deslizando a língua bífida
na pele branca e ávida

o vento lilith sopra velha alquimia
esquerda eu adivinho

meu sátiro sorria


* Imagem : Milo Manara

espelho baço



num caleidoscópio de vícios
tuas palavras caem

alegres bombas
fragmentos de sentido
estridulando teus ecos

feito melancolia dissonante
quimera sorridente

basta fechar os olhos
as orações tilintam e
impassíveis

caem feito chuva
nos cacos de espelhos baços

enfeitando nuvens de incêndio
teus olhos refulgem no vitríolo

ícones despedaçados

2 de nov. de 2016

enredada



O beijo que te dei
Era prenhe de certeza
Repleto de dúvidas


O beijo que te dei
Era feito de nada
Pleno de tudo


O beijo que te dei
Era minha alma
Repleto de mim

Epifania



¸¸.*♡*.¸¸.*☆*¸.*♡*.¸¸.*☆*.¸¸.*♡*.¸¸.*☆*¸¸.*♡*.¸¸.*☆*¸.*♡*.¸¸.*☆*.¸¸.*♡*.¸¸.*☆*¸¸.*♡*.¸¸.*☆*¸.*♡*.¸¸.*☆*.¸

querido


sei bem que não te amo,
mesmo quando te chamo assim
guardo teu olhar e meu susto
num frasco

o vidro reflete essa coisa nua e estranha
repetes no escuro o que já sei. 

Não te amo, amor

recitas cantilenas febris e obedeço à calma
traças amarras rendadas nos meus lábios
mas são teus olhos, honey.

não te amo.

agendamos ao acaso esse desencontro, essa fome
nisso concordamos. Carne, alguma alma e tuas mãos
esparramadas no prato minhas novenas cifradas

é libertador não te amar, Love.
 Confesso.
pode comer essa menina fosca, essa ninfa
essa estranha que entrevejo e amo

e só aparece nos teus olhos.


¸¸.*♡*.¸¸.*☆*¸.*♡*.¸¸.*☆*.¸¸.*♡*.¸¸.*☆*

fé chinfrim


Sonhei contigo ontem ou foi você que sonhou?
Já não sei mais de tão misturada ao teu olhar

Sei que sonhei

Filme mudo misto de Tarantino e Godard
Nós dois no meio do entrevero

Versos bárbaros, teus e meus
Deslindavam o temor
Tricotando fantasias de mármore

Nossas loucuras combinadas
Compunham beatices defumadas
Perfumadas pela minha fé chinfrim

erros



escrevo longas cartas
discretas e várias
em que rasgo meus silêncios

bilhetes natimortos
repletos de traços picotados
erros inconfessáveis

você não as lê

prefere que remeta meus dedos
meus beijos envelopados
abraços selados

os erros caem sem ruído
numa festa de enganos

confetes coloridos

passeiam pela tarde
e parecem repetir
nossas conversas

vagos e inválidos
seus pensamentos
destrincham minha pele
e minha rima

suavemente

poesias ocas


fecho meus olhos
ninguém me vê
escondo-me

confortável no negrume

tua voz morde minha orelha
é vicio que desliza
trazendo correntes
de fantasmas vazios

farfalham no escuro
ecos dessas conversas

poesias ocas esquecidas
ressonam pelos cantos
acalentam meus terrores

desisto e desentendo
aprumo frágeis paliçadas

idéias chegam e fogem
rápidas e tesas

razões pouco razoáveis
sussurram teu nome

respiro fundo

- Muralhas seriam melhores

31 de out. de 2016

era uma vez...




  era uma vez...

num desses dias
em que o tempo caía assim
vadio e morno

tudo parecia mortiço
azul e estridente
afundávamos num silencio movediço

num desses dias
repleto de verdades latentes
reticente e terno

fingia lotear abismos
quando nos vimos
nos inventamos

sombras que somos

fantasmas vagos
impenitentes  guerreiros

armados de medo e versos nus
meus olhos  acordaram
e alheios seguiram a música

tua língua
teus malabarismos

inventei uns risos frágeis
eram quebradiços, bem sei

sem cor , cheios de vícios
desfaziam-se ao sol

mas, ao meio dia
enchiam precipícios

28 de out. de 2016

Desatino



distraída
na pedra fria 

caída

na chuva 
balbucio atos

todos falhos


o lobo sorri

escondendo os dentes
eu sorrio 
desvairada 

o frio escorregando pelas entranhas


cortada ao meio

lacerada

descia pelo chão 

em belos arabescos

27 de out. de 2016

Terremotos em Caixa de Areia



“O expresso do oriente/Rasga a noite, passa rente/ E leva tanta gente/Que eu até perdi a conta/E nem te contei uma novidade, quente...”

A maquete, a espera e a observação ocupavam meus dias. Ver o mundo sem estar nele era tudo que conseguia fazer, com breves intervalos para beliscar alguma coisa do que deixavam na geladeira. Depois voltava para a o computador só para ver o que ela fazia e esperar.
Não falava com ela há muito tempo, se contentava em ver e ela já tinha até esquecido que a câmera estava ali, tinha quase me esquecido, mas isso eu não permitia. Ela estava presa na minha trama de culpa, desejo, medo e amor.
Era tarde quando ela chegou, caía uma chuva miúda, a chuva batia nas telhas e a gata fitava o telhado. Eu acompanhava seus movimentos, mas não me importava. Não mais.
Ainda entrevia os espíritos como sombras no canto do olho, mas deixava que sumissem. Andava cansado. Cansado de espíritos e preces, cansado de ficar ali sozinho no escuro esperando por ela. Meu remédio, minha terapia.
Ela e a gata tinham certa similaridade, moviam-se de modo parecido e pareciam estar sempre à espera de algo que não viam. Teclei alguns comandos e abri o zoom de modo que pudesse ver melhor. Ela circulava seminua pela sala, uma xícara de chocolate quente numa das mãos e o telefone na outra. As janelas do pequeno apartamento estavam fechadas. Ela raramente as abria. Eu a ouvi ligar para o trabalho e avisar que ficaria em casa no dia seguinte. Sabia que estava doente e quis ir até lá, mas não fui, fiquei ali onde era seguro. Em vez disso, faria com que viesse até mim.
Ela sentou-se finalmente para teclar com as centenas de amigos e eu pude ver seu rosto mais claramente. Gostava do modo como ela franzia a testa quando se concentrava em algo.
Desliguei o computador, pus os fones de ouvido e voltei a trabalhar na maquete. Veneza estava pronta, faltavam alguns detalhes e terminar o trem. A parte interna precisava ficar perfeita, trabalhei um pouco mais rápido. Queria voltar ao posto de observação antes que ela terminasse as intermináveis conversas. Não queria perder o close up.
Pronto. O expresso estava perfeito, bastaria um toque para concluir, uma peça para ficar perfeito. Quando voltei ao computador ela já não estava só. Um grupo animado cortava a noite fria numa formação compacta. Risos, afagos e beijos alternavam-se com doses fartas de cinismo e sarcasmo. Dois deles pareciam mais eufóricos, embora rissem e falassem num tom mais baixo.
Minha menina observava séria e calada demais. Mandei a mensagem de socorro e observei-a ler e, ato contínuo, se levantar para sair. Os amigos ficaram, mas eles não me interessavam. Desliguei meu observatório. Tomei um longo banho, me deitei e esperei, no escuro.
A porta abriu-se e pela nesga de luz que vinha da rua eu a vi. Acendeu as luzes, uma a uma, até que restassem muitos cantos escuros para meus fantasmas. Deslizou até o sofá onde eu fingia dormir e beijou-me a testa. Arrumou meus recortes de caos e depois se despiu devagar e devagar veio até mim. Toda aquela luz me deixava quase feliz e quase me fazia esquecer a maquete, mas quase não é tudo. A luz parecia vir com ela, algo como uma parte integrante do brinquedo.
No canto do quarto, presos numa nesga de sombra, os espíritos esperavam. Fechei os olhos e voltei a mergulhar na pele branca, naquela luz sufocante que era ela. Depois eu a levei até o pequeno trem, estacionado na pequena gare, cercado de luz e cor. Precisava dela no meu mundo novo, para onde o expresso me levaria. Estava tudo pronto, ela precisava apenas beber do vinho, tocar no trem e a mágica dos espíritos faria o resto. Morreríamos para o mundo. Seria apenas uma longa viagem com ela nua ao meu lado.

Rosa Cardoso

25 de out. de 2016

antífona


religiosamente
recito teu nome

– meu confessor –

som a som
num brado
sacramentado
nas conjecturas
de um adivinho
faz muito tempo


– séculos talvez –


mas sejamos leves
e as profecias entoadas
serão breves

são o presságio
guardado num códice sagaz

teu grito se esconderá
na bainha em que guardo
o vaticínio e a oblação

não se pode ter tudo
não se pode.

cardo


Escrevo

Um arremedo de poesia
sem rima nem métrica
não há regras
não há nem mesmo verso
talvez...

Um pseudo-verso
perdido na noite insone

O que eu faço?

Cardo almas irmãs
bordo caminhos avessos
distraída artesã
teço versos peregrinos
conto histórias
Do que não sou
fulgores distantes

Persigno velocinos
Em nome dos santos desvarios
Que vagam pela cabeça
Benzo os beijos perdidos
Abençôo meu amor
E esconjuro teus pecados


Rosa Cardoso

22 de out. de 2016

novenário torto



faz tanto tempo, meu pequeno
leio tuas entrelinhas gritadas
e me escondo nos entremeios

protegida pelos símbolos
escorrego na tua língua
uma imagem quieta e perdida
nessa retina cansada

há tantas nuvens, meu menino
e a chuva caindo
sobre teu sorriso de quem desentende
e se surpreende
com esses barcos desencontrados

a poesia,essa menina danada
trepada num galho
recita versos que caem no meu colo

enquanto durmo

recito teu novenário
feito de sorrisos distraídos e àvaros
sonhos de praia perdida

teus olhos sussurram
deslizam céu e mar
eu presto atenção

mão no queixo

soletrando pelo dia
tuas palavras avessas
construo barquinhos de papel
de versos esquecidos
que guardo bem na curva
perto da aurora


...aquela que não te dei
 
(rosa cardoso)

21 de out. de 2016

inerme


acusador,
teus olhos dançam
negrume iluminado que me prende

arame farpado

esplendor

desejo pagão

eu desacredito de tudo
acredito nos feitiços insana,
rosada e lunar
bebo contigo, anjo perdido
e corada aceito a embriaguez
dessas novenas afoitas

vinho sem mistura

feito foice arranca sinfonias
invade as certezas ,
deus-cego e destruído
abre as belas pétalas dessas verdades tortas
colhendo esses beijos natimortos
na vindima do inferno

taça florescente recheada de alma
temperada em pecados inermes

Bibelô trincado



Você não me vê
Parada na tua estante
Bibelô trincado
Vestida de delírio

Você não me vê
Sou um rabisco esquisito
Aquele borrão carmim
Eu sei

Fantasiada de beijo
Pareço cansada assim
Travestida em afago

Você não me vê
Mesmo que atravesse paredes
Apenas para esse arpejo
Eu sei

Vez por outra morro
Desisto
Desencarno

Noutras renasço
Na primeira nota da ária
Capitulina desse romance insano
Apareço na tua porta
Princesa nua, bruxa distraída
Deusa e dragão

Fico na ponta da língua
Da tua e da minha
Beirando abismos
Viro palavra não dita
Quase nascida
Verso esquecido
Deixo o passado
E fico por ser

Enuma elish...


havia a raiva

feito serpente

bicho ruim

pelos cantos

havia poder

deslindando o caos

dissecando tudo

havia o desejo

certezas vagas

chuva miúda

minha boca na sua

havia tua beleza errática

minhas culpas temáticas

teus sorrisos asmáticos

havia mil beijos esquecidos de se dar

eles beiravam o abismo

e voejam ao teu redor

não vê?

havia você

na tal caixa

que Pandora abriu

19 de out. de 2016

O escafandro e a borboleta



era bem tarde quando bateu na escotilha
o mar era profundo e vasto

eu vestia meu traje e fugia
hermeticamente refugiado
nas lembranças suaves

pessoas ,sentimentos,coisas,olhares
distantes e extintos
perdido nesse mar

meus olhos de escafandrista vagueiam
enquanto as asas dela se debatem
trazendo sopros ávaros

desejo de tornar a ver ou possuir
o passado que não volta

borboleteava na janela
hermética
mas não existe mais


Rosa Cardoso

17 de out. de 2016

Celofânica



Meus dedos cansados
Deslizam
Cordas imaginadas
Pendem sobre abismos

Tensas

Dedilho com cuidado
Velocidade de dobra
Desfolho sonhos apressados

Penso catecismos

Conselhos didáticos
Vagueiam pelas cercas
Em vôos celofânicos

Tudo vão

Recolho as asas
Imensas dentro do alambrado


Rosa Cardoso

16 de out. de 2016

fim de caso

Imagem:Stanislav Plutenko 

Abandonei a musa manca
Atolada no meu palavrório chocho
Pobre dama imortal!

Cortamos relações

Vagamos então
Fingindo não nos ver nesse charco
Ignoramos as nuvens
Mesmo quando chovem corações

Tortos
Acéfalos
Natimortos

Minha deusa manca afunda
Cria oratórios na lama
Brinca de Ofélia
Distraída e louca
Canta versos indecentes
Todos bárbaros!

Cortamos relações!

Não nos beijamos mais
Somos agora torturadas charlatãs
Comportadas santas
Mãos sobre o colo
Cruzamos as pernas bentas
Em mudas zangas

13 de out. de 2016

DESACORDO




— Eu disse que precisávamos resolver isso.

Sorria ao repetir a frase, quando ela desligou o chuveiro e passou a enxugar os cabelos. Sabia que ficar ali parado encarando-a daquele jeito a incomodava, eram amigos há muito tempo. Tinha certeza que ela também não daria o braço a torcer. Divertia-se com sua teimosia silenciosa, andando nua pelo quarto, não se deixando vencer pela estranheza da situação. Gostava disso nela. Ainda enxugando os cabelos ela respondeu suavemente.

— Eu sei o que disse, mas agora o que eu preciso é ir embora.

A pressa, o rubor e os olhos tristes o irritavam mais do que gostaria de admitir. Era como se fosse agora outra mulher que tinha na sua frente.

— A pressa é sua não minha.

Passou a recolher as roupas espalhadas pelo quarto, os lábios dele se estreitaram numa linha fina.

— É eu sei que a pressa é minha.

Sabia que estava sendo sensata e até gostava disso, mas por alguma razão a sensatez dela naquele momento o irritava, sentia uma raiva crescente daquele ritual de despedida e fuga. Pegou sua saia sobre a cadeira num gesto rápido, ela sorriu e foi pegar alguma outra peça esquecida perto da cama, depois estendeu a mão pra que ele lhe desse a saia. Estava bonita assim semi-vestida, apressada e descalça. Ele sorriu e agarrou-a para um beijo rápido.

— Tudo bem. Vou ficar mais um pouco. Importa-se em sair sozinha?

Disse num tom neutro enquanto permitia que ela pegasse a saia.

— Fica tranqüilo. Prefiro assim.

Ajudou-a com o zíper, ela sorriu quando ele a beijou na curva do pescoço. Gostava do sorriso, era uma das coisas de que gostava nela, pois fazia um contraste interessante com os olhos tristes. Deitou na cama, braços sob a cabeça e ficou assistindo sua amiga se arrumar.

— Quando te vejo de novo?

— Não vê. Acho que resolvemos tudo que tínhamos pra resolver.

Prendeu os cabelos num coque, passou batom e passava os olhos pelo quarto em busca da bolsa, sapatos e da chave da porta.

— Não sei, acho que preciso resolver isso mais algumas vezes.

Ela sorriu. Estava quase pronta.

— Sei.

Procurava as sandálias.

— Sabe? Convencida.

Achou-as em algum lugar entre a cama e a porta.

— Não. Não sei. Te vejo quando quisermos, quando der ou não nos vemos. Não importa muito, não foi o que você disse? Queria apenas foder-me por horas.

— Foi o que eu disse ? Só não disse quantas horas.

Ela viu a chave na mão dele, olhou o relógio, ele sorriu.

12 de out. de 2016

fantasmagórico



Há qualquer coisa de insano
Não sei bem onde ou quando

Vem nesse sorriso
Ou viaja comigo?

Inexorável
Cerca
Ronda
Povoa


Ontem te vi
Cruzando a Brigadeiro

Delírio
Sonhos
Gavetas
Medo
Desejo


Converso contigo
Sem pressa
Apreso teu apreço
Deito no colo e cantas

Recito
Mantras
Tentativa
Inútil

Controlar pensamentos?
Bobagem!

Você é turbilhão
Arrasta
Pensamentos
Gavetas

Livros
Letreiros
Tudo que vejo
Traz gotas da tua saliva

Beijo fantasmagórico
Queima feito brasa

tatuagens de papel

você chama ,
nesse idioma
ritmado e ladino.

tirano

entoa loas à toa
em que me aferro

cedo

acredito nesse drama
as palavras desmaiam
a língua desliza

lasciva

penso em Odisseu
traço planos
desenho mapas de fuga

amarro teus pulsos
tapo os ouvidos
desdigo tuas tramas

enquanto pasmas
leio ideogramas
bordo na pele

tatuagens de papel

sonhei contigo ontem





Sonhei contigo ontem. Não mando em meus sonhos, eles são meio rebeldes e invariavelmente me levam a você. Sonhei com teu beijo inexistente que me deixou um vago sabor de morango na boca. Acordei com saudades de te ver, do teu sorriso, das longas conversas sobre nada.
Sonhei com carícias longas, daquelas que duram horas, sonhei com tua boca que promete tantas coisas e cumpre tão poucas. Acordei assim, inquieto.
Hoje, nesse momento, se eu pudesse... Mesmo sabendo de todas as impossibilidades eu queria te ver, ignorar tuas meias-verdades, deixar de lado as palavras eficientes e vazias, e passar uma tarde à toa, deslizando minha língua devagar pela tua pele, conversando sobre coisas importantes e sobre o nada, rir e ter você em doses alternadas. Era o que gostaria hoje, mas as impossibilidades dançam à minha volta e você está distante de muitas formas.
Pensei em várias coisas para dizer, em maneiras de me despedir do que nem chegou a começar, e achei que, escritas, as palavras seriam mais fáceis de ser ditas, mas não são, e o pior é que elas não podem ser enviadas com um olhar anexo, um sorriso, um afago. Se eu disser algo errado elas não voltam.
Mesmo assim vamos tentar.
Sem te ver fica mais simples. Ainda ontem, quando te vi, minha única intenção era dizer essas coisas, aceitar o desejo como fato e depois partir, mas tua boca me deu outras idéias. Gosto dela, do teu sorriso, e terminamos do jeito de sempre.
Você obedeceu admiravelmente ao meu pedido de que se afastasse, mas fazendo isso parece ter ficado mais forte e eu mais fraco.
Inferno!
Era para ser uma carta de adeus, e eu aqui divagando.
Como pode ver, sou complicado e confuso. Escolho sua versão de sonho quando quero o real em minhas tardes, ao menos em uma delas.
Você conhece mais de mim do que eu gostaria de admitir, embora seja burra demais para entender o que lê. Tudo bem. Não importa mais. Vou enviar antes que desista.
Ah! Mesmo que não perceba, em anexo vai um sorriso bobo, um afago e um beijo rápido.


poetas




Hoje senti tua falta
Rabisquei na parede nua
Pedaços da tua alma
Invocação de reversos

Numa chama fria apareceste

Fugimos pelas gretas
Caçados por verbos curvilíneos
Apregoados nas feiras

Conversamos nas entrelinhas
Entendemos tudo errado

E sorrimos

Acho que é a sina
Aquela coisa da crise
É nosso motor

Que te parece?

Vagar Sem alma,
Pelados assim marcados
Destinados a observar abismos
o chamado feito música

É sina

Fugir
Cantar odes ao abismo
E ao amor
E ao desamor
Num cantochão sem fim

Estás vendo?

SIBILA (conto)



* Escrito para Lanóia depois de alguma conversa sem sentido e o pq alguém tinha me pedido um conto que incluísse um pacto e meias sete oitavos.


Era uma noite fria do começo de junho. Meu carro havia parado no meio de um imenso nada, o celular não tinha sinal e eu esperava na estrada, sozinho, desempregado, falido e mal pago. Depois de quinze minutos de raiva e recriminação, parei de pensar e apenas esperei. Preparava-me para desistir daquela tolice, quando Sibila surgiu das sombras e ficou um momento imóvel, a silhueta recortada contra o céu.

Nenhuma luz brilhava além do clarão mortiço da lua minguante que delineava as curvas que eu conhecia bem. Estava na mesma encruzilhada onde dez anos atrás eu a invoquei pela primeira vez.

— Pontualidade. Gosto disso num homem, especialmente quando ele é meu.
Meu coração começou a bater tão forte que meu peito doeu. Tive esperança de que ela não viesse. A saia balançava suavemente, respondendo aos movimentos do vento, mas ela não se afastava do ponto onde as estradas se encontravam. Atravessei a distância que nos separava tremendo, enquanto Sibila me saudava com um aceno e uma rajada de chuva fina e gelada, um truque bem típico dela.

— Você não me deixou muitas escolhas, deixou?
Sempre que pensam em seus demônios, as pessoas pensam em calor. Eu penso em frio, mas tinha esquecido que, ao voltar àquela encruzilhada, sentiria muito frio todo o tempo e não só pelo clima.

— Não reclame. Foram dez anos felizes que te dei. Uma família bonita, bom trabalho, grana. Tudo que me pediu, sem tirar nem pôr.

— Você se esqueceu de dizer que me tiraria tudo, assim.

Ela sorriu quando me aproximei e abriu os braços.

— Vem fácil, vai fácil. Você sabe que não sou nenhum anjo.

A pálida luz da lua brilhando em seu rosto produziu o resultado de sempre: uma quebra na linha de pensamentos infelizes. Aquela mulher era uma festa para meus olhos. Sorri, esquecido por um momento da razão do reencontro.Ela sorriu também, antes de me envolver num abraço, antes que eu me perdesse em seu perfume, antes do beijo. Era uma velha amiga que, com o passar dos anos, havia se tornado inimiga, mais uma na imensa lista de amigos a quem eu havia traído. Uma das muitas pessoas dedicadas a arruinar minha vida.
— Tá, sou seu, mas deixe minha família em paz. Eles não te devem nada.

Ela sorria enquanto deslizava a unha afiada e vermelha pelo meu rosto, deixando uma trilha de sangue. — Deixo. — Lambeu o sangue suavemente.

— Vamos terminar logo com isso, então.

Ela tirou o vestido e ficou ali, no meio da estrada, vestindo apenas suas meias sete oitavos e os sapatos de saltos intermináveis. O tempo passava denso e escuro. Fechei os olhos. Não precisava ver para saber que ela tinha uma tatuagem em forma de estrela na virilha, ou de como seus seios eram perfeitos. Na última vez, tudo me foi dado depois de um beijo. O beijo de agora seria o pagamento. Minha alma e tormentos menos suaves pela eternidade.

— Tic TAC tic TAC tic TAC... Vamos, querido. Tenho outras almas para tomar.
O tempo passava. Eu lutava para encontrar uma saída, mas não havia, a menos que fosse um bom exorcista. Desajeitado, beijei-lhe a tatuagem na virilha; ela contorceu o rosto num esgar de prazer, enquanto eu murmurava minhas últimas preces, as orações mais sentidas e verdadeiras que jamais fiz. Sibila gargalhou, ergueu-me pelo queixo e gritou alguma coisa que não pude entender, numa língua gemida, língua que já devia ser velha e esquecida antes que eu sonhasse em nascer; e, mesmo sem ter entendido o conteúdo das frases, senti meus pelos se eriçarem enquanto ela as dizia.

Antes do beijo final, ouvi um rosnado baixo, um desafio, vindo das margens da estrada, de onde surgiu uma figura negra e graciosa. Sibila largou meu queixo e disse algo suave e gentil à sombra escura e lhe estendeu a mão. A sombra respondeu com mais frases na língua morta e cravou os dentes no braço da minha bruxa, que cuspiu em sua direção.
Então, Sibila olhou para mim, e se eu duvidei por muito tempo que ela fosse o que dizia ser, agora tinha certeza: seus olhos vermelhos chisparam sobre mim, depois se torceu e se retorceu até virar algo que lembrava um gato, para desaparecer na noite. A sombra que viera em minha defesa desapareceu também e eu fiquei ali com o coração aos pulos.
Então, um ronco de motor à distância quebrou o encanto: um caminhão descia a estrada buzinando para o louco parado na encruzilhada. Caí no acostamento vendo o vermelho das luzes traseiras do caminhão, depois os insetos, depois as estrelas, depois mais nada. Corri para o carro, fechei os vidros e esperei por algum socorro.

Isso foi há uma semana. Sibila ainda vem à minha casa cobrar a dívida. Não aparece todas as noites, mas vem na maioria delas. Entra pela janela do banheiro e murmura coisas naquela língua estranha, desliza a língua pelo meu corpo e desaparece quando ouve o rosnar das sombras. Não sei o que fiz para merecer a ajuda, e egoísta e amedrontado, tento ser bom para que ela não suma.

Sabotagem (Rosa Cardoso)




Contei até dez e
Meio incerta
Disse não pro teu sorriso

Não quero mais no meu colo
Essa alma desabalada
Essa coisa quebrada
Esse desejo inacabado

Decidi

Flanávamos no meio dessa aurora
Tudo era baço menos teu sorriso

Não te contei?

Sei desfazer o laço
Bastaria cortar essa liga
Que tua língua tem
Que me fisga

Bastaria não pensar
Calar tua voz imaginada

Bastaria...

Eu sei

Desfazer o laço
Fugir desse abraço
Contar até dez
Até cem
Até...

Que teu sorriso
Desata a ponta
Noutro canto
E vem outra noite
Outro verso
Outro encanto
E esse fado
Fiado em desertos

Os fios desse estofo me distraem
Embaraço os dedos nos teus
Risco tuas costas
Desenho teu nome
Sorrio
E fico
Enovelada
Enroscada
Enrascada
Engasgada

Traçando mapas para o nada
Perdida e enredada

Não quero contar mais nada
Confesso às minhas asas

Aquelas que dormem bem ali
Presas por teus alfinetes na almofada