1 de out. de 2016

A escuridão sorri






É tarde. A escuridão sorri
bate na outra vidraça.

Prece insone,
pancadas aflitas

Um velho código,
suave e insistente.
Palavras antigas
ditas nessa língua
que eu devasso.

É tarde e esse breu goteja
dos teus olhos tristonhos,
junto com a neblina fulva
que rasteja do teu sorriso.

É tarde e ouço o mantra
com que roubas os risos.
Aqueles guardados na bruma,
que bafeja a vidraça
enquanto teus medos
vagueiam enluarados.

29 de set. de 2016

Espreita

Guerreiros nascem com esse dom, pelo menos é o que dizem, vez por outra, depois de um beijo ou de um gole de chá os mestres que se acercam de mim. Eles parecem sempre muito preocupados e distraídos com as filigranas que minha língua faz para dizer que devo buscar outra ocupação, pois não sou uma guerreira boa o bastante para espreitar a vida à espera do que ela tiver pra dar. Quando falo em língua me refiro às duas: o órgão físico e ao uso que faço das palavras, mas creio que depois que paro de falar eles pensam apenas nos desenhos úmidos que traço em suas peles de sábios.

 Eu espreito o que acho interessante, em geral observo minha presa desinteressada do que farei com ele ou do que fará comigo. Nunca me notam mesmo até o momento final. Sou neutra, inócua, algo parecido com uma camareira de hotel, um garçom, uma enfermeira, percebem que há ali uma pessoa, sem registrar direito o fato, enquanto eu os desenho para mais tarde pintá-los ou pô-los num conto ou poema.  Muito raramente me alimento deles. Sou inofensiva, lasciva e preguiçosa.  Como biscoitos molhados no leite e observo a rua quando o trabalho me entedia.

Hoje acordei dos meus sonhos intranquilos e depois de conferir que não haviam (ainda) brotado anteninhas em minha testa, pus meus pés descalços a caminho da cozinha, meus gatos Gregor e Samsa embaraçavam-me os passos, olhei no armário e a ração dos pobres canalhas havia acabado, enchi então um copo de leite gelado para mim, um prato de biscoitos de chocolate e dois pires para eles que me olharam rancorosos. Era tarde, passava das cinco, a luz do dia que eu não vi passar se dissolvia numas sombras meio tristonhas e eu pensava que assim sem sol na pele, de nada adiantava o leite. Como um biscoito e esqueço da minha provável carência de vitamina D.

Já é noite quando o caminhão de mudanças chega e a rua, antes vazia, se enche de ruídos. Caixas deixam a carroceria e depois de terem sido conferidas na lista que um dos homens examina, talvez o motorista, talvez o dono da casa. Como um biscoito, beberico o leite, faço um cafuné em Samsa que saltou para o peitoril da janela e decido que deve ser o dono. Ele chegou um pouco depois do caminhão, armado de sua lista e não tinha saído de dentro dele, pra dizer a verdade ele parece ter brotado no chão, não o vi chegar. Meus biscoitos estavam na metade quando o veículo barulhento sumiu na noite sem lua. Gregor caçava uma barata e Samsa ronronava em meu colo, tentando me lembrar que leite e biscoitos eram gostosos, mas que uma ração sabor atum seria ainda melhor. O dono, meu novo vizinho, estava parado na calçada, mãos nos bolsos e parecia espreitar também, esquadrinhando a rua. Diferente de mim ele parecia perigoso, olhou para as janelas, seu olhar deslizava cuidadosamente de quadrado para quadrado, até que parou na minha. Samsa abespinhou-se, saltou do meu colo e eu, vítima de um instinto primitivo saltei também. Mortalmente assustada. São os riscos de se ficar à espreita assim, desarmada.

Rosa Cardoso

28 de set. de 2016

acordei desalmada


acordei desalmada
hoje fiquei enredada no breu

nada serve, nada me encanta
não me espanta o canto da cigarra
que, deslocada  ciciou até estourar

perdi a alma na escuridão
escorregou num desvão

 teu sorriso me valia no céu azul
eu entrevi numa entrelinha
tentei sorrir de volta
acenei

acho

ando esvaída de certezas
 mente pintada em tarjas vermelhas e pretas

 encolhi num canto o esgar
não era um sorriso

minha alma evaporou
sinal de fumaça
código morse

sopra de volta
manda a cigarra cantar
cicia pra mim
sorria por mim
acredita por mim?


Imagem: Mistress of Pain
by NanFe
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Digital Art / Drawings & Paintings / Macabre & Horror

Janelas....pra Rita





Não!
Não feches teus olhos!
Deixa-os abertos,
Escancarados mesmo.
Como se fossem janelas
Ou, quem sabe,
Imensos portais
Prontos para me receber
Como gostosos amantes
Numa noite de lua.

Teus olhos

Num grito calado
Choram e pedem,
Ou antes, esperam.
Algo distante,
Perdido...
No tempo e no espaço
Além do inconsciente.

27 de set. de 2016

quimera




"What's in a name? That which we call a rose
By any other name would smell as sweet."
Romeo and Juliet (II, ii, 1-2)

Guardo tudo 
em arquivos 
ilógicos e anárquicos 
que nem eu mesma entendo. 

Estranhas conexões, 
símbolos absurdos. 

Guardei você, 
sua imagem, 
sob um ícone multicolorido. 

Outro nome, 
outras cores
mas é você. 

 "Que há num nome? Aquilo que chamamos rosa com qualquer outro nome seria igualmente doce".

Janelas  
 nuvens  
                     espelhos 
  sonhos
              olhos tristes 

 Kamikazes de papel ! 

Coleciono palavras e
 gosto de dançar com elas,
 me esconder debaixo delas.

 Você brincando, 
distraído e rápido,
 as decodifica. 

Devo ser fácil 
 óbvia demais. 

Sorriso 
sorvete 
tarde 
música 
 notas erradas! 

Palavras e imagens 
caem sobre mim 
em largas e pesadas gotas.

 Janelas 
nuvens 
espelhos
sonhos
olhos tristes 
Kamikazes de papel! 

Tudo fica absurdamente importante
 quando nada é tudo que se tem. 

Sorriso 
sorvete 
tarde 
música
notas erradas! 

O menino sorri e 
e pede a caneta,
 precisa que desenhe 

os olhos do homem-aranha

 a adolescente resmunga
 e eu sorrio. 

Janelas 
nuvens 
espelhos 
sonhos 
olhos tristes 
Kamikazes de papel! 

Seu sorriso surge 
na tela da memória, 
bem ali ao alcance da mão,
 ao alcance do beijo. 

Está bem ali 
transfigurado 
 símbolo de algo bom. 

É meu agora 
e eu gosto dele, 
mas e daí ? 

Nada? 

Tudo? 

E daí? 

Ainda é preciso desenhar
 os olhos do homem aranha 
 ouvir alguns resmungos

 importantíssimos

 Sorriso 
sorvete 
tarde 
música 
 notas erradas! 

Guardei você também,
 sorrisos e palavras 

 vamos combinar assim: 

Você não me decifra 
e eu não te devoro. 

Janelas 
 nuvens 
espelhos 
sonhos 
olhos tristes 

Kamikazes de papel! 



Esquecer




O final de tarde
Traz o vinho
Que entorpece a alma
E acaricia a língua

O Vinho
Trouxe essa voz
Que toca meu corpo
E desperta um carinho novo

A voz
Traz consigo alguém
Que sorri à minha frente
Acarinhando-me com o olhar

O sorriso
Pede que eu fique

Mas a noite
Diz que devo ir

E eu vou

Andando devagar
Curtindo o azul do céu
Namorando a lua

Tentando não ver o sorriso
Que feito vadio
Corre pelo ar.

desejo




– queria um gesto único
um que pudesse

tocar-te inteiro

e, egoisticamente

guardar-te junto a mim

– para sempre

ou até amanhã.



26 de set. de 2016

Gula



Eu não minto, você bem sabe!
Aposto todas as fichas
na primeira mão boa.

Teu beijo indistinto
 sabor morango vago
morango esfaimado


recito meus mantras
luto insone
contra suas lembranças

minha língua
conhece o caminho
a trilha

é cadenciada
ladina.


Você sabe e: 

presto!
pecados somem
 embalados
em pequenos cataclismos

Desejo:


simples
reto
direto

sem contento,
quero!


renitente e teimoso
toda essa culpa.


sangue
segredo
incesto

faminto, faminto
saio da quaresma
caio no carnaval
coração acelerado

cravo os dentes
na curva do pescoço
desse fruto,
todo sumo chupo

até que de fome
eu entre
em luto
e te esqueça

25 de set. de 2016

Quero







quero


um abraço


um beijo devasso


me amalgamar


ao teu braço


dançar


no compasso


dasbatidas


do teu coração....












Rosângela Cardoso