28 de out. de 2016

Desatino



distraída
na pedra fria 

caída

na chuva 
balbucio atos

todos falhos


o lobo sorri

escondendo os dentes
eu sorrio 
desvairada 

o frio escorregando pelas entranhas


cortada ao meio

lacerada

descia pelo chão 

em belos arabescos

27 de out. de 2016

Terremotos em Caixa de Areia



“O expresso do oriente/Rasga a noite, passa rente/ E leva tanta gente/Que eu até perdi a conta/E nem te contei uma novidade, quente...”

A maquete, a espera e a observação ocupavam meus dias. Ver o mundo sem estar nele era tudo que conseguia fazer, com breves intervalos para beliscar alguma coisa do que deixavam na geladeira. Depois voltava para a o computador só para ver o que ela fazia e esperar.
Não falava com ela há muito tempo, se contentava em ver e ela já tinha até esquecido que a câmera estava ali, tinha quase me esquecido, mas isso eu não permitia. Ela estava presa na minha trama de culpa, desejo, medo e amor.
Era tarde quando ela chegou, caía uma chuva miúda, a chuva batia nas telhas e a gata fitava o telhado. Eu acompanhava seus movimentos, mas não me importava. Não mais.
Ainda entrevia os espíritos como sombras no canto do olho, mas deixava que sumissem. Andava cansado. Cansado de espíritos e preces, cansado de ficar ali sozinho no escuro esperando por ela. Meu remédio, minha terapia.
Ela e a gata tinham certa similaridade, moviam-se de modo parecido e pareciam estar sempre à espera de algo que não viam. Teclei alguns comandos e abri o zoom de modo que pudesse ver melhor. Ela circulava seminua pela sala, uma xícara de chocolate quente numa das mãos e o telefone na outra. As janelas do pequeno apartamento estavam fechadas. Ela raramente as abria. Eu a ouvi ligar para o trabalho e avisar que ficaria em casa no dia seguinte. Sabia que estava doente e quis ir até lá, mas não fui, fiquei ali onde era seguro. Em vez disso, faria com que viesse até mim.
Ela sentou-se finalmente para teclar com as centenas de amigos e eu pude ver seu rosto mais claramente. Gostava do modo como ela franzia a testa quando se concentrava em algo.
Desliguei o computador, pus os fones de ouvido e voltei a trabalhar na maquete. Veneza estava pronta, faltavam alguns detalhes e terminar o trem. A parte interna precisava ficar perfeita, trabalhei um pouco mais rápido. Queria voltar ao posto de observação antes que ela terminasse as intermináveis conversas. Não queria perder o close up.
Pronto. O expresso estava perfeito, bastaria um toque para concluir, uma peça para ficar perfeito. Quando voltei ao computador ela já não estava só. Um grupo animado cortava a noite fria numa formação compacta. Risos, afagos e beijos alternavam-se com doses fartas de cinismo e sarcasmo. Dois deles pareciam mais eufóricos, embora rissem e falassem num tom mais baixo.
Minha menina observava séria e calada demais. Mandei a mensagem de socorro e observei-a ler e, ato contínuo, se levantar para sair. Os amigos ficaram, mas eles não me interessavam. Desliguei meu observatório. Tomei um longo banho, me deitei e esperei, no escuro.
A porta abriu-se e pela nesga de luz que vinha da rua eu a vi. Acendeu as luzes, uma a uma, até que restassem muitos cantos escuros para meus fantasmas. Deslizou até o sofá onde eu fingia dormir e beijou-me a testa. Arrumou meus recortes de caos e depois se despiu devagar e devagar veio até mim. Toda aquela luz me deixava quase feliz e quase me fazia esquecer a maquete, mas quase não é tudo. A luz parecia vir com ela, algo como uma parte integrante do brinquedo.
No canto do quarto, presos numa nesga de sombra, os espíritos esperavam. Fechei os olhos e voltei a mergulhar na pele branca, naquela luz sufocante que era ela. Depois eu a levei até o pequeno trem, estacionado na pequena gare, cercado de luz e cor. Precisava dela no meu mundo novo, para onde o expresso me levaria. Estava tudo pronto, ela precisava apenas beber do vinho, tocar no trem e a mágica dos espíritos faria o resto. Morreríamos para o mundo. Seria apenas uma longa viagem com ela nua ao meu lado.

Rosa Cardoso

25 de out. de 2016

antífona


religiosamente
recito teu nome

– meu confessor –

som a som
num brado
sacramentado
nas conjecturas
de um adivinho
faz muito tempo


– séculos talvez –


mas sejamos leves
e as profecias entoadas
serão breves

são o presságio
guardado num códice sagaz

teu grito se esconderá
na bainha em que guardo
o vaticínio e a oblação

não se pode ter tudo
não se pode.

cardo


Escrevo

Um arremedo de poesia
sem rima nem métrica
não há regras
não há nem mesmo verso
talvez...

Um pseudo-verso
perdido na noite insone

O que eu faço?

Cardo almas irmãs
bordo caminhos avessos
distraída artesã
teço versos peregrinos
conto histórias
Do que não sou
fulgores distantes

Persigno velocinos
Em nome dos santos desvarios
Que vagam pela cabeça
Benzo os beijos perdidos
Abençôo meu amor
E esconjuro teus pecados


Rosa Cardoso