17 de dez. de 2019

manhã





A calma silenciosa da noite,
Aproximando-se do dia,
Tingindo de púrpura meus sonhos

A doçura da paz noturna escorregando
Em direção ao burburinho picante da manhã

Som, luz e energia
Até o macio retorno da paz
Magia que Mescla suave e doce
Nossos beijos e amores


Eu e você, juntos,
Enquanto houver lua e estrelas, ou
Até que surja uma nova manhã
Pintando de púrpura os olhos nus


Poesia de Rosa Cardoso

10 de dez. de 2019

invocação

Essa noite eu desci
seu colo, quente
- na verdade
escorreguei -
suas mãos macias,
leves...


escuro em volta

(a luz estava em nós)


Meu peito em você

te sentindo quente,
eu estava grudado
e rodávamos
ventando suavemente..


estávamos em uma nuvem qualquer..

dançávamos voando
mergulhados na escuridão


frio lá fora

e você com o calor dos anjos


Guarda,

não quero alma!
Boca língua palma
Preciso te ver!


Guarda essa alma!

Ela já me encantou...


Guarda essa calma!

Esconde esse pejo!


Obedece!

Boca língua palma...


Não me pede calma!

Deixa-me te levar,
raptar surrupiar trancar


Acredita.

Eu não minto.


Cumpre essas promessas

remetidas, arremetidas
por essa boca


Vem. Acredita.

Eu não minto.


Guarda essa alma,

dispa-se sem pressa


Guarda essa alma,

peito perna boca língua


Alma? Que alma?



Por favor, não fala!

Tua voz me perde...
Não me confunde Inferno!


Vem me ver sem alma

sem calma, obedece!

Poema de Rosa Cardoso
(imagem Lovers #34 por Thomas J.Vilot)

4 de dez. de 2019

silêncio



Os longos silêncios que pareciam feitos dos tentáculos de algum animal mítico. Eram eles que mais a incomodavam. Silêncios cheios de um vazio imensurável e tão vazios que faziam seus ossos doerem. O silêncio invadia todos os mundos em que ela navegava e até as almas andavam caladas, nenhum sussurro a seguia pelos cantos frios da velha casa escura, nenhuma sombra se escondia nas gretas.

Os remédios a tornavam surda a tudo que fosse incomum ou interessante. Ela suspirou e empilhou as panelas, guardou cada prato e copo em seus devidos lugares e depois voltou à massa de pão que descansava sobre a mesa já enfarinhada, onde sovou até que tudo ficasse liso e perfeito, sovou até que os reservatórios de medo estivessem vazios e ocos como a casa estava, sovou até que os nós dos dedos doessem. Depois colocou a massa para descansar e os pensamentos voltaram enquanto ela sentava quieta sem nada mais a fazer além de pensar no marido distante ou lembrar de como eram os movimentos do bebê sob sua tenda de pele.

O bebê tinha sido sua esperança de que o vazio desaparecesse. Na verdade, ele se tornara seu único refúgio a única coisa que tinha se permitido imaginar, a única esperança de futuro, mas agora não havia nada, apenas a lembrança daquela boneca morta que tinha uma pele azul de fada.

Os remédios vieram depois, caixas tarjadas de vermelho e preto que a faziam outra, talvez alguém mais aceitável, alguém que pudessem salvar.O céu estava claro e ela ergueu o rosto, estendeu seu espírito até a entrada da floresta onde sabia que a lua se espraiava e quase pôde ouvir os sussurros enrugados dos espíritos perdidos, podia senti-los agora, mais próximos do que em qualquer outro momento anterior.

Voltou rápido e agradeceu por estar sozinha. Não havia perigo de ser vista imaginando. Foi deitar e da cama ouviu quando um dos espíritos abandonados derrubou as panelas, pensou vagamente que ratos eram mais fáceis de controlar do que espíritos com senso de humor duvidoso.

Não tomou os remédios, mas empilhou as pílulas num canto do criado mudo. Olhou um pouco para elas , depois vestiu a camisola, apagou as luzes e caminhou no escuro, quando chegou à cozinha o espírito arranhava a porta e ela bocejou enquanto refazia o intrincado equilíbrio das panelas.

Lá fora o vento zumbia nas árvores, o ar se tornava subitamente gelado e os sussurros quase se tornaram uma palavra. Pensou vagamente no quanto os espíritos podem ser aborrecidos quando eram ignorados, despiu a camisola e enfiou-se nas cobertas. Sonhou que amamentava a pequena fada e que ambas tinham asas.

3 de dez. de 2019

Pouso forçado






Sombra sentada sobre mim
Passagem para a melancolia
Tristeza discreta
Quase sem avaria

Nessa fase conformista
Dentro dos conformes
Liguei o modo avião

Funciona?
Não sei ao certo
Conto quando aterrar

Olho as ondas e marolas
Revoltas brandas
Céus de brigadeiro

Todo dia um golpe
Um soco na boca da alma
E, pelo canto do olho assisto
Outra conquista estuprada
Quem liga?

Aperte os cintos

Não olhe pra baixo
Não se afogue
Não se queixe
Não desabe

Esqueça o goblin
Amarre o incubus

Desacelere lá vem a pista!

Poema de Rosa Cardoso


29 de nov. de 2019

o chamado





os fios vibram
sinais vagos
que te trazem
te guardam

desligada
ignoro as mudanças.

sigo distraída
pela invocação
que me envolve
e brandamente
cinge minha cintura.

cerca-me
num abraço amorfo.

mergulha dissoluta
fura-me as veias
luto,
acho que vou resistir.

vã tentativa,
devassa,
respiro tuas cores
e desisto.





Poema de Rosa Cardoso

trivial




desde o caos
em que
por acaso
te vi
fiquei assim
muda
rendida
eu fujo
minto
finjo entender
teus
cicios
inícios
silêncios
desde o início
do vício.
não queria
juro,
não fala
não quero
não preciso ouvir
só do beijo
você quer
deseja,
chama e
assim ,
resumo tudo
trivial
signo de caos,
marcado
na tua pele


Poema de Rosa Cardoso

vestígios de afagos






trago esse sorriso
num envelope discreto

em que guardo
pequenos cacos

vestígios de afagos

ninguém vê o sorriso
quebrado e findo

assim eu consigo
evitar esse peso

é meu feitiço lasso
ameno e delicado

um tipo de insana
angustiante inação



Poema de Rosa Cardoso

lilith, marias e evas





Ao sul do equador,            
 Minha querida
 Fica o pecado

Aquele que oferto

Espera-te resiliente e quieto
Numa caixa perolada
                                                                   
Prometo um vício repaginado
Originalmente inexistente
Falado numa língua diferente

Na tua

Naquela que desliza
Tudo que falo

Doer
Latejar
Piscar
Devorar-te              
Ao sul do equador.

Dizem

Há cinquenta tons de cinza

Eu vejo claramente
Penugem escura
                                           
Dormente

Tuas lambidas distantes
Distraídas e inconsistentes

Ao sul do equador
Tudo gira
                       
Sem as dores
Sérias de Eva

Sem os amores de Maria

Resta-me
Afundar no umbigo de Lilith
Alimentar fogo com fogo
Antropofagia!

Poesia de Rosa Cardoso

mordaz



preciso respirar
as mentiras suaves
que teus olhos contam

– não olha agora!–

não me encara assim
com esse afeto
sou só uma alucinação

– não olha agora!–

teu olhar arde;
quando desliza assim
pungente na minha pele

– não olha agora!–

não abre os olhos
não quero teus olhos
só o beijo que
deixa na língua
esse prazer mordaz...

(rosa cardoso)

sinas e tentáculos



Finalmente desentendi
Não me pergunte quando
Deslembro, apago e afago
O dia, a semana, o mês

Você estava lá e basta

Desmonto todos os fatos
Desencaminho sinas e tentáculos

Teu sorriso assassina regras e atos

Ando farta de fatos
Dessas dúvidas órfãs

Numa tarde vazia
Recito orações tecidas em desvario

Poema de Rosa Cardoso
Gravura de Iriene Borges

1/4 de confusão e uma dose de incerteza



Não te contei...
Guardo minha escuridão
Com cuidado e medo
Num remoto escaninho,

Que fica à direita dos desejos.
Desejos e medos que escondo
Na cerração que desliza
Em espesso nevoeiro.

Sei que não contei
Não dessa vez..

Sonhei com seu sorriso e sorri.
Visão imprevista e tão rara
Seu sorriso flutuando
Entre céticos desejos...

Acredito em tantas coisas
Algumas disparatadas e loucas
Costumo duvidar de você

Recuar mil passos atrás

Desconfiada e descrente
Mas, quando sorri.
Tudo muda
E até em você acredito.
E nesse seu sorriso
Que desmente todo o resto.

Brinco com sua sombra
Aquela que prendi numa gaveta

E sem que perceba
Viscosa e demoradamente

Desejos,
Terrores,
Escuridão e medo.
Escapam por entre os esconsos

Assustada
Escondo-me no sorriso


(rosa cardoso)
.

Escapulário






a ideia sorri
oscila numa dança
ondeia suave

relíquia que não houve
quase sentido
foi por um triz

pendente

fica esse gosto
presumido

essa coisa
por dizer

e você
encantado




escapulário








a ideia sorri
oscila numa dança
ondeia suave

relíquia que não houve
quase sentido
foi por um triz

pendente

fica esse gosto
presumido

essa coisa
por dizer

e você
encantado





5 de abr. de 2019

Amarras de papel



Tudo, sempre, começa e termina aqui no meu colo.
Tudo que nos enreda em tramas de fios delicados de densidade variada.
Não tenho certezas, apenas arrumo grandes e pequenas sabotagens.

São intencionais mas não parecem ser.
Amarras de papel presas aos pulsos pálidos.

E um cansaço imemorial. Tudo que fiz me prendeu e termina por te aprisionar .
E ele jamais se culpa , jamais! Pega cada erro e os arremessa em meu colo
Cansada amarro perdas, persas, pedras, lágrimas e lembranças. Tudo encadeado.

Vi ontem marcas de lágrimas fantasmagóricas desenhadas na pele.
Lágrimas que guardadas transbordam. Desdenham dos meus segredos.

Rios secos. Fantasmas dantescos.

Cubro com arte e parte delas fica. Tudo fica
Agora mesmo recolhi algumas e forjo poemas
Penas, trancos, barrancos, covardias e corajosas bravatas

5 de jan. de 2019

todas sabemos quem sou



a poesia vai e vem
hoje piscou fugaz
flertou comigo
um milionésimo de segundo

sem deixar um verso sequer
nem uma única rima

olhei em seus olhos
sorriu e correu
mas eu vi

as árvores dançavam
embaladas pelo vento
contavam meus pretéritos
telepatia verde e ventosa

eu me fingia ocupada
o mundo por salvar
máscaras a usar

 olho a conversa secular
 murmuram velhas verdades
todas sabemos quem sou

Rosa Cardoso