21 de dez. de 2018

O incenso perfura tudo





Há uma agonia esquisita bem ali onde minto
Naquele pedaço de chão tem um tapete fino
Entremeei a trama de agulhas
Pintei de espinhos, flores, terra e sangue
Canto nos fins de tarde para ninguém

Cânticos enovelados ecoam na abóbada
Milênios de cinzas, certezas e dúvidas
Bem ali no canto recito todas as orações
Entremeadas de desvarios e vazio

Elas sobem alto no céu
Ele vê com o canto do olho
E talvez ouça
Atento e rápido

Desenha meus destinos indeterminados
Fala, sussurra , vaticina e murmura quem devo ser
Porque, eu sei, no princípio era o Verbo
Ele conta dum ciclo que se fecha...

Enuma Elish rondando minha cabeça
Tudo isso ou nada...
Não importa muito...
O incenso perfura tudo

Fumaça de dúvidas e preces

Elas cantam!
Nós mulheres entreteladas,
Entremeadas de sombra e luz,
Sibilas esvoaçantes
Sedutoras e assustadas
Enroladas em véus e cilício
Voando em tapetes mágicos.


Poema de Rosa Cardoso e
Arte criada por uma Inteligência Artificial


4 de nov. de 2018

O inferno



Quando foi mesmo que aquilo começou? Acho que foi no meio da tarde, lembro-me do calor. 
Não sei quem começou, não consigo lembrar, não que isso importe. O que importa é que meu sorriso voltou. Ele estava sumido, mas eu o vi no espelho hoje, sorrindo diante dessa mulher seminua e parcialmente desconhecida que reluz no espelho, entardeci quando quebrei o espelho e caí, eu despenquei em abismos coloridos e anoiteci resguardada na escuridão escrevo contos inverossímeis e rabisco muralhas ocas que mantém minha sanidade resguardada num canto qualquer desse aquário infernal.
Estou travada, emparedada, morta, presa. Ninguém vê minha arte, meu encanto fica circunscrito ao passado é fumaça. Há tanto a fazer e tão pouco tempo. Sozinha fica mais difícil, mas eu me adapto, esse é meu maior talento. Conjuro as memórias sem pressa, o tempo corre ao meu redor, mas preciso esquecê-lo e me concentrar na matéria prima. Versos perfeitos para um feitiço bem feito. Danço com as palavras: salvação, redenção e morte. Fecho os olhos e rompo as defesas uma a uma. São muitas, perfeitas e intricadas. Sua mente está cercada de bem construídas muralhas de escuridão. Por fim eu o vejo. Está imerso em pesadelos e só tem olhos para a mulher que eu sou que fui e que serei. Ela vai morrer, sempre morre. Já vi dezenas de vezes. Preciso me apressar, logo ele vai acordar sem que eu consiga dizer o feitiço que fiz, terminar minha artesania. Um desejo o rumo das nossas vidas, ao menos em parte. Vestida na pele da outra recito meus versos. Ele não se importa quando volto a ser eu mesma e sussurro o feitiço. Está feito. Ele volta ao sonho, mas não se lembrava do sonho em si, apenas do medo, do desespero e do desejo. Acordava naquela hora em que, embora seja muito tarde para dormir é muito cedo para levantar. A voz permanecia. Ela sussurrava a historia que também era a dele, enquanto as cinzas do que tinha sido uma vasta biblioteca de encantos e lendas dançava no vento e as cinzas eram quase belas rodopiando, segredando os gritos que haviam sido calados pelo fogo e pela espada. Abriu os olhos e junto com a dor foi atingido pela visão dela. Estava bela tingida pelas cores do incêndio mortiço e ele pensou num verso que combinaria bem com a cena, mas a dor afastou o breve surto de poesia. A dor e a lembrança dela eram quase a mesma coisa. “Quando trancei tua pele na minha eu me perdi” Ele pensou ou disse, não tinha certeza. Ela acomodou melhor a cabeça dele que sentia seus afagos e se encantava com a festa que os cabelos dela faziam em seu rosto e deslizou para um sono suave, sua mente vacilava entre o terreno do real e do sonho e num dos dois ela cantava feitiços numa língua morta e sorria e ela falava ou pensava, ou pensava e falava, ou ele dormia e sonhava “Minha sombra era maior do que eu e você, naquela época em que eu te odiava. Não tinha alma, agora você sabe. Era feita de um imenso vazio” Ele fechou os olhos para não ver como o rosto dela ainda era o mesmo, para não se encantar com as pequenas rugas que brincavam em torno dos olhos da mulher para quem compusera seus melhores poemas, seus melhores feitiços e as suas piores maldições. A mulher que carregava um pedaço de sua alma. “Como se percebe que alguém não tem alma quando a embalagem é tão bela? Eu não percebi.” Um fragmento de livro flutuou diante deles e ele pensou que parecia uma borboleta ferida. “Os livros não me falaram de você, Nenhum presságio me alertou do perigo em teus olhos,” Em algum lugar além do incêndio espadas retiniam e os últimos guardiões morriam. Ele lembrou de que ele também era um guardião, velho e cansado como aqueles que morriam lá adiante. Ela acarinhou seus cabelos brancos e voltou a cantarolar o feitiço. Ele não acreditava mais em feitiços. A pele da mulher tinha uma luminescência suave que ia se intensificando junto com a lua cheia que se erguia no céu e o encanto adquiria um ritmo mais febril. “Não precisa fazer isso, não me deve nada, fez o que precisava fazer. Naquela lua negra você não roubou um pedaço da minha alma, eu te dei.” Ela cantava e quando os assassinos dos guardiões cruzaram o portão uma luz imensa envolveu a todos e ele a viu cair enquanto era levado pela luz e escapava de tudo. Acordou banhado em suor. Um cão uivava. Gatos faziam buracos no telhado. E, por um instante, havia um olhar de brasa acesa num canto do quarto. Ele olhou de novo, mas não havia nada além da cadeira vazia. Lembrava-se desse olhar e da pele luminosa da mulher que se escondia nas sombras. Sonhos são sempre imprecisos, Mesmo esses que sonhamos acordados, essas visões alquebradas, velhas e vazias. O dia invadia a cidade enquanto ele afastava dos seus olhos as cinzas dos livros mortos e fingia não ver o fogo que dormia na pele da mulher sonhada. Ficou deitado, tomando coragem para levantar.  As sombras do quarto se desfazendo, numa lentidão que agoniava. Caminhou pelo quarto para espantar as últimas teias de aranha que o sonho havia deixado. Ouvia a voz recitando os versos, sabia que era um feitiço um chamado, consciente ou inconscientemente direcionado a ele. Estava naquela ciranda há dois anos. Eram sonhos que continuavam de outros, sempre mostrando a mesma mulher. Acordava impregnado dela, seu rosto, seu sorriso sem nome. Por mais que tentasse pensar em outra coisa e ser racional não conseguia. Ela estava por toda parte. Blindava os pensamentos contra o olhar irreal e vagava pelas ruas soçobrando em cacos de beijos, morte e feitiços. As pessoas, a cidade, o trabalho pareciam sombras. O tempo se arrastava até o entardecer, quando ele corria para casa. Dormir e sonhar eram seus desejos. Tudo que queria. Dormir e lembrar.  O mundo desperto era o pesadelo, o inferno, onde se escondia. Procurava-a nas mulheres que trazia para sua vida e se sentia ridículo procurando por seu demônio em cada rosto de mulher. No sonho ela o fazia sentir tão completo, que juraria que estava desperto e havia ainda aquela sensação familiar de ser totalmente amado; uma satisfação que, ele sabia era mágica demais para ser real.
Petra chegou à cidade no início de uma noite enluarada depois de uma viagem que ela disse ter sido agradável. Faz dois anos que a encontrei parada na entrada do meu prédio. Dois anos de considerações das implicações de acreditar em tudo que ela disse naquele dia. Dois anos de tentativas e de pesquisas, dois anos em que ela manteve a voz e os sonhos controlados. Ela era boa nisso, nessa coisa de invadir intricados cenários mentais, boa nessa coisa de investigar o que ninguém vê. Fechando os olhos ela me puxava para perto, era fácil já que eu queria ir e via minhas lembranças, meus sonhos, meus medos. Ela via o cara que me cerceava os sonhos. Eu ainda podia ver o sorriso dele, ainda sentia o gosto da ansiedade e do medo que sentiu no primeiro beijo que ela lhe deu. Podia sentir a raiva que sentira quando ela o mandou embora. Ela trazia tudo consigo quando voltava para mim. Estava tudo ali guardado em suas lembranças, escondido entre seus beijos e nos meus sonhos. Dois anos. É muito tempo para fugir de nossas obrigações e destinos. Nós duas sabemos e tentamos não pensar muito nisso. Amanhecia e a luz a acordou. Ela abriu os olhos sorriu pra mim, espreguiçou-se e deslizou até a cozinha. Essa foi uma das coisas em que eu a reconheci, esse jeito de andar como se dançasse que parece fazer o resto do mundo desaparecer. Ela cantava enquanto o cheiro de café perfumava o ar do pequeno apartamento. Eu me perdi na observação da rua e em vigiar a tempestade que se aproximava. Precisávamos bloquear todos os canais e afundar no mar de pensamentos corriqueiros para que nem mesmo eles a encontrassem, ela tinha me ensinado ou relembrado (como ela dizia) o que eu tinha de fazer. Podia sentir que estavam perto demais. Petra não pretendia voltar, não sem terminar o que veio fazer. E dizia que precisávamos dele para reaprender, refazer os caminhos e no processo reencontrarmos a nós mesmos porque éramos velhos amigos. Ela voltou com o café, trouxe alguns beijos também e transamos por algum tempo. O vento zunia.  Lá fora a tempestade se adensava, o sexo amplificava nossos feitiços. Os feitiços dela para ser mais exata, pois eu tinha que adormecer e sonhar. Cabia a ela controlar tudo. Nossas mentes entrelaçadas num sonho agoniado... Ele estava perdido e sozinho numa cidade escura e sombria. Fugindo. Desviando de qualquer um que fosse remotamente humano. Nenhum feitiço de alerta. Quando se viram, nada o tinha preparado. Apenas ela parada no corredor, sorrindo e trazendo algo que ele tinha perdido. Mostrou-lhe o quarto e, naquele, segundo ele soube todas as respostas. Soube quem ela era. Sua amiga, sua mulher, sua favorita e sua salvadora. Vê-la sorrindo era tranquilizador. Ela entra no quarto. Ele acorda. Eu acordo. O coração disparado. O sol brilhando. O quarto estava frio, e pela janela, vi que finalmente a tempestade caiu. E saber o que iria acontecer era um tormento. Já havia visto aquela mesma tempestade pelo menos cinco vezes, Petra procurou uma cadeira perto de uma das janelas e esperou rabiscando anotações.  Não estava nervosa apenas inquieta e impaciente. Esperou que me acostumasse aos fatos. Eles chegaram pouco antes das nove. Ela me olhou com o olhar cínico e divertido de sempre. Devolvi o olhar apenas por diversão e passei a avaliar a situação que teria de enfrentar enquanto a jogava sobre a cama.
 —  Oi Ravi. Que bom que está aqui.   Tenho uma entrevista, marcada para amanhã no Templo... Sétimo andar. E não posso chegar lá sem você, portanto se apresse.
Eu ri.
—  Você sempre fala tanto e tão rápido? Tinha me esquecido disso, nos sonhos não é assim. Lá você fala devagar, parece uma deusa.
Ela riu também.
—  Não. Acho que estou cansada e sou uma deusa ligeiramente histérica. Desculpe.
—  Quanto tempo até eles chegarem?
—  Eu os enrolei com muitos relatórios a baboseira oficial de sempre, mas agora é tarde. A tempestade é obra deles você sabe.
—  Eles sabem de tudo?
— Quase tudo. Não em certeza quanto ao fato de você estar mesmo preso nesse corpo, meus relatórios falam de uma permanência voluntária.
—  Você tem de ir, não precisa se envolver mais e sabe que eu tenho que salvar a mulher.
—  Diabos! Se eu não gostasse tanto de transar com você arrancaria sua cabeça fora! Esqueça a mulher ela é carne morta, já está morta agora só não sabe disso.
  Eu preciso...
— Não precisa. Precisa mesmo é dar o fora antes que a merda toda se repita! Ela nem sabe o que está acontecendo? Quero dizer, nem posso falar abertamente sem deixá-la arrasada? Preciso enfeitiçá-la todo o tempo.
 Claro que não sabe, até o último sonho nem eu sabia.  Você cuidou disso da última vez, esqueceu?  Deveria ter dito a ela enquanto transavam.
 Dito o que?  Okay. Podemos começar assim: Prazer em conhecê-la, o fato é que essa desconhecida aqui é “seu”... Humm. Marido... Somos todos velhos amigos e trabalhamos juntos num projeto que deu miseravelmente errado e ao entrarmos aqui nesse universo, você foi invadida por ele e vai bater as botas. Não vai resistir ao entrelaçamento de nossas energias. Já morreu na minha frente cinco vezes. Nós ferramos sua vida!
— Você pode acrescentar que enlouqueci que resolvi voltar no tempo pra corrigir a falha que causou a morte dela. E fazendo isso nos prendi nesse circuito fechado de tempo em que repetimos indefinidamente essa cena patética.
 Chega! Temos pouco tempo eles estão aqui e você precisa vir comigo, Ravi.  Que  tentativa é essa? A milionésima? Querido você sabe o que resolve sua equação, deixe-a morrer e volte comigo.
Ela aproximou-se da parede e com um gesto discreto criou o portal. Onde antes havia a parede havia agora algo que parecia um bloco imenso de nada, sem substância, sem estrutura. Parecia um imenso vazio. Petra estendeu a mão.
 Vamos. Há pouco tempo.
Um estrondo que lembrava um trovão fez com que a voz dela ficasse mais urgente. Ele sentiu um ódio absurdo pela magia, pela ciência e pelo mundo de onde tinha vindo.
 De que adianta voltar se não posso salvar quem eu quero salvar?
 Metafísica agora não, prefiro quando você é cético. É simples ela morre e você volta comigo. E como você é ela, para mim dá tudo no mesmo, mas vou sentir falta da sua língua e dos peitos. Da janela ela via que o tempo tinha se esgotado.
 Tenham uma boa morte, nos vemos na próxima tentativa.
Finalmente ela chegou ao Templo e subiu rapidamente ao sétimo andar para a entrevista. As largas janelas que permitiam ver a mata. Chegou a uma sala onde a esperavam. Não estava nervosa apenas inquieta e impaciente. Os que esperavam ocasionalmente olhavam em sua direção naquela atitude típica de quem avalia os oponentes. Seu olhar acabou parando sobre um rosto conhecido. A sala esvaziou-se aos poucos até que ficou só com a outra. Elas se avaliavam.
 Sabe nadar?
 Nadar? Nado, mas muito mal, mas não preciso nadar para chegar até Ravi.
 São muitas as coisas que você não sabe e não está entre as minhas tarefas te contar. Basta saber que dessa vez não vai sozinha.
 Ainda bem... Acho que não gosto muito de você, mas qualquer ajuda é bem vinda.
 Escuta, me enganei com você uma vez, mas sei muito bem o motivo que te trouxe aqui, você não vai desistir dele e a ordem quer os papéis que vocês roubaram. 
— É uma troca justa. Eu deveria te enviar para a fogueira ou para algum continuum infernal, ninguém jamais brincou com o tempo impunemente e não é você que vai conseguir me enganar. Aquela falha precisa ser corrigida e sem a minha ajuda você não pode salvar o seu Ravi.
— Pode ser, mas e quanto a nós duas?
Sorriu. Já tinha tentado tantas vezes sozinha quem sabe um novo olhar mudasse a equação. E Nalini seria uma ótima companhia. A outra demorou um instante para responder.
 Porque não? Pode ser divertido.

Rosa Cardoso

7 de set. de 2018

Parca




Alguém vaticinou
em eras perdidas,
entre sonhos e
quimeras ,
entre uma volta e outra
do fuso
que não nos veríamos jamais.

Trapaceiro decidi
...vou vendado

fecha os olhos
o vaticínio se mantém
e você não terá me visto
nem eu também

pronto
problema resolvido
sucesso garantido
o resto era acessório

tua pele e a minha
tem um mapa
que conheço bem

....vou deixar escritas
Instruções
Em braile
gravadas na pedra

responde,
e qualquer dia te pego...
numa parede qualquer.

Rosa Cardoso






27 de ago. de 2018

Quaresma





na quadragésima hora
as badaladas avisaram
que chegavas
cobri teus olhos

panos arroxeados
sombras e flores
te escondiam da ressurreição
em que tateavas

dedos longos que escapavam
deslindando pele e sonho
tuas asas de anjo torto
a me adivinhar!



Rosa Cardoso








26 de ago. de 2018

hirto


.




Decidi
to me desligando
fechando a porta

devagar
sem olhar
meço meus passos

retesado
tenso
hirto

finjo um adeus

rijo
firme
enérgico
intrépido
ríspido

decidi
to me desligando
fechando a porta

o vento cicia
palavras confusas

“tudo isso é passageiro
nós somos eternos”


.



19 de ago. de 2018

vórtices




Vaga e oca ela observa os vórtices no céu claro estendendo dedos alongados e fantasmagóricos procurando por ela. Encolheu-se um pouco na poltrona quando um deles passou mais perto ,sentiu  a energia mas suspirou  sabendo-se protegida e invisível. Avançava em direção àquele lugar que já está começando a considerar um lar. Seu coração estava apertado e ela instintivamente apertava o medalhão que trazia escondido sob a blusa. Os cabelos avermelhados pelas longas horas passadas sob o sol, caíam em cachos espiralados sobre seus ombros nus.
Parou um instante a cabeça encostada ao volante, as nuvens pareciam um rebanho de ovelhas em fuga, bordadas num azul intenso e luminoso sem pensar muito no que fazia ela o procurou. O olhar fixado na direção que ele havia escolhido como sua, vasculhou os ventos em busca de um sinal de sua presença, mas nada encontrou. Ele sabia se esconder tão bem quando não queria ser encontrado que a busca era inútil. Ela desistiu.
Fechando os olhos podia rever a menininha curiosa e ansiosa que ela um dia foi sendo guiada pelos pais até o mestre. Ainda podia ver o sorriso dele, ainda sentia o gosto da ansiedade e do medo que sentiu no primeiro beijo. Podia sentir a raiva que sentira quando ela a mandou embora. Estava tudo ali guardado em suas lembranças, escondido entre seus sonhos.
Abriu os olhos e perdeu-se na observação da estrada e em vigiar o vórtice que se aproximava. Precisava fechar-se também, bloquear todos os canais e afundar no mar de pensamentos corriqueiros para que nem mesmo ele a encontrasse.
Podia sentir que estavam perto, perto demais. Não pretendia voltar, não podia mais negar quem era por isso estava voltando, para reaprender, refazer os caminhos e no processo reencontrar a si mesma. Nunca aceitou muito bem os métodos dele, nunca falaram exatamente a mesma língua exceto na cama.
Lembrava-se de uma discussão com o amigo, numa manhã de primavera. Estavam deitados na grama os pés descalços mergulhados na água fria do lago.
— Não seja tonta — disse caçoando — Ninguém em sã consciência renega esse poder! Você mesma não renega completamente, andou pesquisando e treinando não foi? Arrancou de mim toda a informação que podia e eu te ensinei o melhor que pude!

Ela sentiu-se de novo inundada pela raiva. Poderia ter se afogado nela. Ela não escolheu, apenas aceitou os fatos. Havia aprendido muito, tornara-se eficiente deixando de ser distraída, embora ainda fosse crédula e muito descuidada com sua própria segurança é verdade, mas ainda assim muito capaz.
— Eu não preciso de vocês. Nem de você nem de ninguém. Eu só preciso... Acreditar em mim mesma e posso perfeitamente viver sem isso!

Ele gargalhou e pondo-se sobre ela, prendeu seu rosto entre as mãos e deu-lhe um beijo.

— Você é pura magia, mesmo que não use seu maldito medalhão. E eu preciso de você, vem morar comigo? Quebro meu medalhão se você disser que sim e até compro o maldito carro se quiser, embora voar seja bem mais rápido e eu sem minha mágica perca metade do meu charme e me sinta a mais desprotegida das criaturas eu faria isso por você!

— E as pessoas ainda te acusam de ser manipulador? Que injustiça! Você é o rei dos manipuladores! —ela o beijou sem pressa. —Você está certo é tolice minha... Não consigo imaginar você num carro comigo.

A lembrança se foi assim como ela o abandonara há muito tempo, junto com outros pequenos sonhos.


16 de ago. de 2018

SILÊNCIO




Os longos silêncios que pareciam feitos dos tentáculos de algum animal mítico. Eram eles que mais a incomodavam. Silêncios cheios de um vazio imensurável e tão vazios que faziam seus ossos doerem. O silêncio invadia todos os mundos em que ela navegava e até as almas andavam caladas, nenhum sussurro a seguia pelos cantos frios da velha casa escura, nenhuma sombra se escondia nas gretas.

Os remédios a tornavam surda a tudo que fosse incomum ou interessante. Ela suspirou e empilhou as panelas, guardou cada prato e copo em seus devidos lugares e depois voltou à massa de pão que descansava sobre a mesa já enfarinhada, onde sovou até que tudo ficasse liso e perfeito, sovou até que os reservatórios de medo estivessem vazios e ocos como a casa estava, sovou até que os nós dos dedos doessem. Depois colocou a massa para descansar e os pensamentos voltaram enquanto ela sentava quieta sem nada mais a fazer além de pensar no marido distante ou lembrar de como eram os movimentos do bebê sob sua tenda de pele.

O bebê tinha sido sua esperança de que o vazio desaparecesse. Na verdade, ele se tornara seu único refúgio a única coisa que tinha se permitido imaginar, a única esperança de futuro, mas agora não havia nada, apenas a lembrança daquela boneca morta que tinha uma pele azul de fada.

Os remédios vieram depois, caixas tarjadas de vermelho e preto que a faziam outra, talvez alguém mais aceitável, alguém que pudessem salvar.O céu estava claro e ela ergueu o rosto, estendeu seu espírito até a entrada da floresta onde sabia que a lua se espraiava e quase pôde ouvir os sussurros enrugados dos espíritos perdidos, podia senti-los agora, mais próximos do que em qualquer outro momento anterior.

Voltou rápido e agradeceu por estar sozinha. Não havia perigo de ser vista imaginando. Foi deitar e da cama ouviu quando um dos espíritos abandonados derrubou as panelas, pensou vagamente que ratos eram mais fáceis de controlar do que espíritos com senso de humor duvidoso.

Não tomou os remédios, mas empilhou as pílulas num canto do criado mudo. Olhou um pouco para elas , depois vestiu a camisola, apagou as luzes e caminhou no escuro, quando chegou à cozinha o espírito arranhava a porta e ela bocejou enquanto refazia o intrincado equilíbrio das panelas.

Lá fora o vento zumbia nas árvores, o ar se tornava subitamente gelado e os sussurros quase se tornaram uma palavra. Pensou vagamente no quanto os espíritos podem ser aborrecidos quando eram ignorados, despiu a camisola e enfiou-se nas cobertas. Sonhou que amamentava a pequena fada e que ambas tinham asas.

14 de ago. de 2018

jabuticaba






sonhei-te hoje
num susto acordei
saltei para o escuro

caí nessa lonjura
nesse engodo
nesse muro e te juro
que tudo ali parece perto

vi uns anjos sem asa
sopraram esse teu papo
essa conversa meio à toa

pontos fortes
nortes
mortes

a luz me mostrou o dia
não tinha anjo

minto

tinha um
que tem asa

mergulhado
numa garrafinha

cachaça de jabuticaba

feito saci apreendi
esse diabinho distraído

redemoinhos sonolentos
tampa frouxa e tudo escapa

é dia

a magia esvaída na mesa
acaba sonhos e conversas

Poema de Rosa Cardoso

13 de ago. de 2018

o banquete



no quarto o lobo espera.
os olhos, fitos na porta,
brilham.
antecipando o prazer.

na sala, a moça treme,
os olhos, fitos na porta,
brilham.
antevendo as presas.

no quarto, o lobo brinca.
os olhos, fitos no vermelho,
brilham.
devorando a carne branca.

no quarto, a moça morre.
os olhos, fitos no vermelho,
brilham.
implorando uma última mordida.


Rosa Cardoso

9 de ago. de 2018

entranhável







juro que tento
não ouvir esses ecos
com olhos secos

esconjurei ontem
o sacrário vazio
dessa voz surda
que ronda as tardes

esses sussurros enredados
teus redemoinhos apalavrados
embaracei delicadamente
cada um dos tentáculos

enleada fujo
sem muita pressa

juro... juro que tento
não ouvir esses ermos
em que escondemos tanto
é tarde e
meus olhos desertam


Rosa Cardoso

8 de ago. de 2018

Lingua





Meu corpo fala,
você sabe!


Conhece o idioma.


Minha língua
cadenciada e ladina.


Você sabe,
o que meu corpo fala
quando geme e cicia
e a língua desliza


Lasciva.


E eu te envolvo
lambo
encanto
e você,

me hipnotiza.
Rosângela Cardoso.

5 de ago. de 2018

amém



é complicado ser casual
quando os olhos deslizam
leves
sem pedir aprovação

falamos do tempo
teu olhar desce pelo decote
e meu sorriso
disfarça com precisão
descaso estudado

a boca fala de nadas
importantíssimos
e você vê
perplexo
usos
encaixes

falamos
viagens
crises
palavras

coisas tão pequenas
que te salvam
os anjos sorriem

lembro do tempo
em que cega
viajei contigo de olhos bem abertos
embalada e perdida

é complicado ser casual
com essa coisa
por dizer


Rosa Cardoso

3 de ago. de 2018

¼ de confusão e uma dose de incerteza



Não te contei...
Guardo minha escuridão
Com cuidado e medo
Num remoto escaninho,

Que fica à direita dos desejos.
Desejos e medos que escondo
Na cerração que desliza
Em espesso nevoeiro.

Sei que não contei
Não dessa vez..

Sonhei com seu sorriso e sorri.
Visão imprevista e tão rara
Seu sorriso flutuando
Entre céticos desejos...

Acredito em tantas coisas
Algumas disparatadas e loucas
Costumo duvidar de você

Recuar mil passos atrás
Desconfiada e descrente
Mas, quando sorri.
Tudo muda
E até em você acredito.
E nesse seu sorriso
Que desmente todo o resto.

Brinco com sua sombra
Aquela que prendi numa gaveta

E sem que perceba
Viscosa e demoradamente

Desejos,
Terrores,
Escuridão e medo.
Escapam por entre os esconsos

Assustada
Escondo-me no sorriso


(rosa cardoso)
.

12 de fev. de 2018

Ingenuidade congênita







Tenho em mim essa alma tola
Guardada e afivelada

Engulo cinismo em cápsulas
Sandice em ampolas

Doses diárias

Amenizam minha tolice rara
Mascaram essa coisa atávica