4 de nov. de 2018

O inferno



Quando foi mesmo que aquilo começou? Acho que foi no meio da tarde, lembro-me do calor. 
Não sei quem começou, não consigo lembrar, não que isso importe. O que importa é que meu sorriso voltou. Ele estava sumido, mas eu o vi no espelho hoje, sorrindo diante dessa mulher seminua e parcialmente desconhecida que reluz no espelho, entardeci quando quebrei o espelho e caí, eu despenquei em abismos coloridos e anoiteci resguardada na escuridão escrevo contos inverossímeis e rabisco muralhas ocas que mantém minha sanidade resguardada num canto qualquer desse aquário infernal.
Estou travada, emparedada, morta, presa. Ninguém vê minha arte, meu encanto fica circunscrito ao passado é fumaça. Há tanto a fazer e tão pouco tempo. Sozinha fica mais difícil, mas eu me adapto, esse é meu maior talento. Conjuro as memórias sem pressa, o tempo corre ao meu redor, mas preciso esquecê-lo e me concentrar na matéria prima. Versos perfeitos para um feitiço bem feito. Danço com as palavras: salvação, redenção e morte. Fecho os olhos e rompo as defesas uma a uma. São muitas, perfeitas e intricadas. Sua mente está cercada de bem construídas muralhas de escuridão. Por fim eu o vejo. Está imerso em pesadelos e só tem olhos para a mulher que eu sou que fui e que serei. Ela vai morrer, sempre morre. Já vi dezenas de vezes. Preciso me apressar, logo ele vai acordar sem que eu consiga dizer o feitiço que fiz, terminar minha artesania. Um desejo o rumo das nossas vidas, ao menos em parte. Vestida na pele da outra recito meus versos. Ele não se importa quando volto a ser eu mesma e sussurro o feitiço. Está feito. Ele volta ao sonho, mas não se lembrava do sonho em si, apenas do medo, do desespero e do desejo. Acordava naquela hora em que, embora seja muito tarde para dormir é muito cedo para levantar. A voz permanecia. Ela sussurrava a historia que também era a dele, enquanto as cinzas do que tinha sido uma vasta biblioteca de encantos e lendas dançava no vento e as cinzas eram quase belas rodopiando, segredando os gritos que haviam sido calados pelo fogo e pela espada. Abriu os olhos e junto com a dor foi atingido pela visão dela. Estava bela tingida pelas cores do incêndio mortiço e ele pensou num verso que combinaria bem com a cena, mas a dor afastou o breve surto de poesia. A dor e a lembrança dela eram quase a mesma coisa. “Quando trancei tua pele na minha eu me perdi” Ele pensou ou disse, não tinha certeza. Ela acomodou melhor a cabeça dele que sentia seus afagos e se encantava com a festa que os cabelos dela faziam em seu rosto e deslizou para um sono suave, sua mente vacilava entre o terreno do real e do sonho e num dos dois ela cantava feitiços numa língua morta e sorria e ela falava ou pensava, ou pensava e falava, ou ele dormia e sonhava “Minha sombra era maior do que eu e você, naquela época em que eu te odiava. Não tinha alma, agora você sabe. Era feita de um imenso vazio” Ele fechou os olhos para não ver como o rosto dela ainda era o mesmo, para não se encantar com as pequenas rugas que brincavam em torno dos olhos da mulher para quem compusera seus melhores poemas, seus melhores feitiços e as suas piores maldições. A mulher que carregava um pedaço de sua alma. “Como se percebe que alguém não tem alma quando a embalagem é tão bela? Eu não percebi.” Um fragmento de livro flutuou diante deles e ele pensou que parecia uma borboleta ferida. “Os livros não me falaram de você, Nenhum presságio me alertou do perigo em teus olhos,” Em algum lugar além do incêndio espadas retiniam e os últimos guardiões morriam. Ele lembrou de que ele também era um guardião, velho e cansado como aqueles que morriam lá adiante. Ela acarinhou seus cabelos brancos e voltou a cantarolar o feitiço. Ele não acreditava mais em feitiços. A pele da mulher tinha uma luminescência suave que ia se intensificando junto com a lua cheia que se erguia no céu e o encanto adquiria um ritmo mais febril. “Não precisa fazer isso, não me deve nada, fez o que precisava fazer. Naquela lua negra você não roubou um pedaço da minha alma, eu te dei.” Ela cantava e quando os assassinos dos guardiões cruzaram o portão uma luz imensa envolveu a todos e ele a viu cair enquanto era levado pela luz e escapava de tudo. Acordou banhado em suor. Um cão uivava. Gatos faziam buracos no telhado. E, por um instante, havia um olhar de brasa acesa num canto do quarto. Ele olhou de novo, mas não havia nada além da cadeira vazia. Lembrava-se desse olhar e da pele luminosa da mulher que se escondia nas sombras. Sonhos são sempre imprecisos, Mesmo esses que sonhamos acordados, essas visões alquebradas, velhas e vazias. O dia invadia a cidade enquanto ele afastava dos seus olhos as cinzas dos livros mortos e fingia não ver o fogo que dormia na pele da mulher sonhada. Ficou deitado, tomando coragem para levantar.  As sombras do quarto se desfazendo, numa lentidão que agoniava. Caminhou pelo quarto para espantar as últimas teias de aranha que o sonho havia deixado. Ouvia a voz recitando os versos, sabia que era um feitiço um chamado, consciente ou inconscientemente direcionado a ele. Estava naquela ciranda há dois anos. Eram sonhos que continuavam de outros, sempre mostrando a mesma mulher. Acordava impregnado dela, seu rosto, seu sorriso sem nome. Por mais que tentasse pensar em outra coisa e ser racional não conseguia. Ela estava por toda parte. Blindava os pensamentos contra o olhar irreal e vagava pelas ruas soçobrando em cacos de beijos, morte e feitiços. As pessoas, a cidade, o trabalho pareciam sombras. O tempo se arrastava até o entardecer, quando ele corria para casa. Dormir e sonhar eram seus desejos. Tudo que queria. Dormir e lembrar.  O mundo desperto era o pesadelo, o inferno, onde se escondia. Procurava-a nas mulheres que trazia para sua vida e se sentia ridículo procurando por seu demônio em cada rosto de mulher. No sonho ela o fazia sentir tão completo, que juraria que estava desperto e havia ainda aquela sensação familiar de ser totalmente amado; uma satisfação que, ele sabia era mágica demais para ser real.
Petra chegou à cidade no início de uma noite enluarada depois de uma viagem que ela disse ter sido agradável. Faz dois anos que a encontrei parada na entrada do meu prédio. Dois anos de considerações das implicações de acreditar em tudo que ela disse naquele dia. Dois anos de tentativas e de pesquisas, dois anos em que ela manteve a voz e os sonhos controlados. Ela era boa nisso, nessa coisa de invadir intricados cenários mentais, boa nessa coisa de investigar o que ninguém vê. Fechando os olhos ela me puxava para perto, era fácil já que eu queria ir e via minhas lembranças, meus sonhos, meus medos. Ela via o cara que me cerceava os sonhos. Eu ainda podia ver o sorriso dele, ainda sentia o gosto da ansiedade e do medo que sentiu no primeiro beijo que ela lhe deu. Podia sentir a raiva que sentira quando ela o mandou embora. Ela trazia tudo consigo quando voltava para mim. Estava tudo ali guardado em suas lembranças, escondido entre seus beijos e nos meus sonhos. Dois anos. É muito tempo para fugir de nossas obrigações e destinos. Nós duas sabemos e tentamos não pensar muito nisso. Amanhecia e a luz a acordou. Ela abriu os olhos sorriu pra mim, espreguiçou-se e deslizou até a cozinha. Essa foi uma das coisas em que eu a reconheci, esse jeito de andar como se dançasse que parece fazer o resto do mundo desaparecer. Ela cantava enquanto o cheiro de café perfumava o ar do pequeno apartamento. Eu me perdi na observação da rua e em vigiar a tempestade que se aproximava. Precisávamos bloquear todos os canais e afundar no mar de pensamentos corriqueiros para que nem mesmo eles a encontrassem, ela tinha me ensinado ou relembrado (como ela dizia) o que eu tinha de fazer. Podia sentir que estavam perto demais. Petra não pretendia voltar, não sem terminar o que veio fazer. E dizia que precisávamos dele para reaprender, refazer os caminhos e no processo reencontrarmos a nós mesmos porque éramos velhos amigos. Ela voltou com o café, trouxe alguns beijos também e transamos por algum tempo. O vento zunia.  Lá fora a tempestade se adensava, o sexo amplificava nossos feitiços. Os feitiços dela para ser mais exata, pois eu tinha que adormecer e sonhar. Cabia a ela controlar tudo. Nossas mentes entrelaçadas num sonho agoniado... Ele estava perdido e sozinho numa cidade escura e sombria. Fugindo. Desviando de qualquer um que fosse remotamente humano. Nenhum feitiço de alerta. Quando se viram, nada o tinha preparado. Apenas ela parada no corredor, sorrindo e trazendo algo que ele tinha perdido. Mostrou-lhe o quarto e, naquele, segundo ele soube todas as respostas. Soube quem ela era. Sua amiga, sua mulher, sua favorita e sua salvadora. Vê-la sorrindo era tranquilizador. Ela entra no quarto. Ele acorda. Eu acordo. O coração disparado. O sol brilhando. O quarto estava frio, e pela janela, vi que finalmente a tempestade caiu. E saber o que iria acontecer era um tormento. Já havia visto aquela mesma tempestade pelo menos cinco vezes, Petra procurou uma cadeira perto de uma das janelas e esperou rabiscando anotações.  Não estava nervosa apenas inquieta e impaciente. Esperou que me acostumasse aos fatos. Eles chegaram pouco antes das nove. Ela me olhou com o olhar cínico e divertido de sempre. Devolvi o olhar apenas por diversão e passei a avaliar a situação que teria de enfrentar enquanto a jogava sobre a cama.
 —  Oi Ravi. Que bom que está aqui.   Tenho uma entrevista, marcada para amanhã no Templo... Sétimo andar. E não posso chegar lá sem você, portanto se apresse.
Eu ri.
—  Você sempre fala tanto e tão rápido? Tinha me esquecido disso, nos sonhos não é assim. Lá você fala devagar, parece uma deusa.
Ela riu também.
—  Não. Acho que estou cansada e sou uma deusa ligeiramente histérica. Desculpe.
—  Quanto tempo até eles chegarem?
—  Eu os enrolei com muitos relatórios a baboseira oficial de sempre, mas agora é tarde. A tempestade é obra deles você sabe.
—  Eles sabem de tudo?
— Quase tudo. Não em certeza quanto ao fato de você estar mesmo preso nesse corpo, meus relatórios falam de uma permanência voluntária.
—  Você tem de ir, não precisa se envolver mais e sabe que eu tenho que salvar a mulher.
—  Diabos! Se eu não gostasse tanto de transar com você arrancaria sua cabeça fora! Esqueça a mulher ela é carne morta, já está morta agora só não sabe disso.
  Eu preciso...
— Não precisa. Precisa mesmo é dar o fora antes que a merda toda se repita! Ela nem sabe o que está acontecendo? Quero dizer, nem posso falar abertamente sem deixá-la arrasada? Preciso enfeitiçá-la todo o tempo.
 Claro que não sabe, até o último sonho nem eu sabia.  Você cuidou disso da última vez, esqueceu?  Deveria ter dito a ela enquanto transavam.
 Dito o que?  Okay. Podemos começar assim: Prazer em conhecê-la, o fato é que essa desconhecida aqui é “seu”... Humm. Marido... Somos todos velhos amigos e trabalhamos juntos num projeto que deu miseravelmente errado e ao entrarmos aqui nesse universo, você foi invadida por ele e vai bater as botas. Não vai resistir ao entrelaçamento de nossas energias. Já morreu na minha frente cinco vezes. Nós ferramos sua vida!
— Você pode acrescentar que enlouqueci que resolvi voltar no tempo pra corrigir a falha que causou a morte dela. E fazendo isso nos prendi nesse circuito fechado de tempo em que repetimos indefinidamente essa cena patética.
 Chega! Temos pouco tempo eles estão aqui e você precisa vir comigo, Ravi.  Que  tentativa é essa? A milionésima? Querido você sabe o que resolve sua equação, deixe-a morrer e volte comigo.
Ela aproximou-se da parede e com um gesto discreto criou o portal. Onde antes havia a parede havia agora algo que parecia um bloco imenso de nada, sem substância, sem estrutura. Parecia um imenso vazio. Petra estendeu a mão.
 Vamos. Há pouco tempo.
Um estrondo que lembrava um trovão fez com que a voz dela ficasse mais urgente. Ele sentiu um ódio absurdo pela magia, pela ciência e pelo mundo de onde tinha vindo.
 De que adianta voltar se não posso salvar quem eu quero salvar?
 Metafísica agora não, prefiro quando você é cético. É simples ela morre e você volta comigo. E como você é ela, para mim dá tudo no mesmo, mas vou sentir falta da sua língua e dos peitos. Da janela ela via que o tempo tinha se esgotado.
 Tenham uma boa morte, nos vemos na próxima tentativa.
Finalmente ela chegou ao Templo e subiu rapidamente ao sétimo andar para a entrevista. As largas janelas que permitiam ver a mata. Chegou a uma sala onde a esperavam. Não estava nervosa apenas inquieta e impaciente. Os que esperavam ocasionalmente olhavam em sua direção naquela atitude típica de quem avalia os oponentes. Seu olhar acabou parando sobre um rosto conhecido. A sala esvaziou-se aos poucos até que ficou só com a outra. Elas se avaliavam.
 Sabe nadar?
 Nadar? Nado, mas muito mal, mas não preciso nadar para chegar até Ravi.
 São muitas as coisas que você não sabe e não está entre as minhas tarefas te contar. Basta saber que dessa vez não vai sozinha.
 Ainda bem... Acho que não gosto muito de você, mas qualquer ajuda é bem vinda.
 Escuta, me enganei com você uma vez, mas sei muito bem o motivo que te trouxe aqui, você não vai desistir dele e a ordem quer os papéis que vocês roubaram. 
— É uma troca justa. Eu deveria te enviar para a fogueira ou para algum continuum infernal, ninguém jamais brincou com o tempo impunemente e não é você que vai conseguir me enganar. Aquela falha precisa ser corrigida e sem a minha ajuda você não pode salvar o seu Ravi.
— Pode ser, mas e quanto a nós duas?
Sorriu. Já tinha tentado tantas vezes sozinha quem sabe um novo olhar mudasse a equação. E Nalini seria uma ótima companhia. A outra demorou um instante para responder.
 Porque não? Pode ser divertido.

Rosa Cardoso