13 de out. de 2016

DESACORDO




— Eu disse que precisávamos resolver isso.

Sorria ao repetir a frase, quando ela desligou o chuveiro e passou a enxugar os cabelos. Sabia que ficar ali parado encarando-a daquele jeito a incomodava, eram amigos há muito tempo. Tinha certeza que ela também não daria o braço a torcer. Divertia-se com sua teimosia silenciosa, andando nua pelo quarto, não se deixando vencer pela estranheza da situação. Gostava disso nela. Ainda enxugando os cabelos ela respondeu suavemente.

— Eu sei o que disse, mas agora o que eu preciso é ir embora.

A pressa, o rubor e os olhos tristes o irritavam mais do que gostaria de admitir. Era como se fosse agora outra mulher que tinha na sua frente.

— A pressa é sua não minha.

Passou a recolher as roupas espalhadas pelo quarto, os lábios dele se estreitaram numa linha fina.

— É eu sei que a pressa é minha.

Sabia que estava sendo sensata e até gostava disso, mas por alguma razão a sensatez dela naquele momento o irritava, sentia uma raiva crescente daquele ritual de despedida e fuga. Pegou sua saia sobre a cadeira num gesto rápido, ela sorriu e foi pegar alguma outra peça esquecida perto da cama, depois estendeu a mão pra que ele lhe desse a saia. Estava bonita assim semi-vestida, apressada e descalça. Ele sorriu e agarrou-a para um beijo rápido.

— Tudo bem. Vou ficar mais um pouco. Importa-se em sair sozinha?

Disse num tom neutro enquanto permitia que ela pegasse a saia.

— Fica tranqüilo. Prefiro assim.

Ajudou-a com o zíper, ela sorriu quando ele a beijou na curva do pescoço. Gostava do sorriso, era uma das coisas de que gostava nela, pois fazia um contraste interessante com os olhos tristes. Deitou na cama, braços sob a cabeça e ficou assistindo sua amiga se arrumar.

— Quando te vejo de novo?

— Não vê. Acho que resolvemos tudo que tínhamos pra resolver.

Prendeu os cabelos num coque, passou batom e passava os olhos pelo quarto em busca da bolsa, sapatos e da chave da porta.

— Não sei, acho que preciso resolver isso mais algumas vezes.

Ela sorriu. Estava quase pronta.

— Sei.

Procurava as sandálias.

— Sabe? Convencida.

Achou-as em algum lugar entre a cama e a porta.

— Não. Não sei. Te vejo quando quisermos, quando der ou não nos vemos. Não importa muito, não foi o que você disse? Queria apenas foder-me por horas.

— Foi o que eu disse ? Só não disse quantas horas.

Ela viu a chave na mão dele, olhou o relógio, ele sorriu.

12 de out. de 2016

fantasmagórico



Há qualquer coisa de insano
Não sei bem onde ou quando

Vem nesse sorriso
Ou viaja comigo?

Inexorável
Cerca
Ronda
Povoa


Ontem te vi
Cruzando a Brigadeiro

Delírio
Sonhos
Gavetas
Medo
Desejo


Converso contigo
Sem pressa
Apreso teu apreço
Deito no colo e cantas

Recito
Mantras
Tentativa
Inútil

Controlar pensamentos?
Bobagem!

Você é turbilhão
Arrasta
Pensamentos
Gavetas

Livros
Letreiros
Tudo que vejo
Traz gotas da tua saliva

Beijo fantasmagórico
Queima feito brasa

tatuagens de papel

você chama ,
nesse idioma
ritmado e ladino.

tirano

entoa loas à toa
em que me aferro

cedo

acredito nesse drama
as palavras desmaiam
a língua desliza

lasciva

penso em Odisseu
traço planos
desenho mapas de fuga

amarro teus pulsos
tapo os ouvidos
desdigo tuas tramas

enquanto pasmas
leio ideogramas
bordo na pele

tatuagens de papel

sonhei contigo ontem





Sonhei contigo ontem. Não mando em meus sonhos, eles são meio rebeldes e invariavelmente me levam a você. Sonhei com teu beijo inexistente que me deixou um vago sabor de morango na boca. Acordei com saudades de te ver, do teu sorriso, das longas conversas sobre nada.
Sonhei com carícias longas, daquelas que duram horas, sonhei com tua boca que promete tantas coisas e cumpre tão poucas. Acordei assim, inquieto.
Hoje, nesse momento, se eu pudesse... Mesmo sabendo de todas as impossibilidades eu queria te ver, ignorar tuas meias-verdades, deixar de lado as palavras eficientes e vazias, e passar uma tarde à toa, deslizando minha língua devagar pela tua pele, conversando sobre coisas importantes e sobre o nada, rir e ter você em doses alternadas. Era o que gostaria hoje, mas as impossibilidades dançam à minha volta e você está distante de muitas formas.
Pensei em várias coisas para dizer, em maneiras de me despedir do que nem chegou a começar, e achei que, escritas, as palavras seriam mais fáceis de ser ditas, mas não são, e o pior é que elas não podem ser enviadas com um olhar anexo, um sorriso, um afago. Se eu disser algo errado elas não voltam.
Mesmo assim vamos tentar.
Sem te ver fica mais simples. Ainda ontem, quando te vi, minha única intenção era dizer essas coisas, aceitar o desejo como fato e depois partir, mas tua boca me deu outras idéias. Gosto dela, do teu sorriso, e terminamos do jeito de sempre.
Você obedeceu admiravelmente ao meu pedido de que se afastasse, mas fazendo isso parece ter ficado mais forte e eu mais fraco.
Inferno!
Era para ser uma carta de adeus, e eu aqui divagando.
Como pode ver, sou complicado e confuso. Escolho sua versão de sonho quando quero o real em minhas tardes, ao menos em uma delas.
Você conhece mais de mim do que eu gostaria de admitir, embora seja burra demais para entender o que lê. Tudo bem. Não importa mais. Vou enviar antes que desista.
Ah! Mesmo que não perceba, em anexo vai um sorriso bobo, um afago e um beijo rápido.


poetas




Hoje senti tua falta
Rabisquei na parede nua
Pedaços da tua alma
Invocação de reversos

Numa chama fria apareceste

Fugimos pelas gretas
Caçados por verbos curvilíneos
Apregoados nas feiras

Conversamos nas entrelinhas
Entendemos tudo errado

E sorrimos

Acho que é a sina
Aquela coisa da crise
É nosso motor

Que te parece?

Vagar Sem alma,
Pelados assim marcados
Destinados a observar abismos
o chamado feito música

É sina

Fugir
Cantar odes ao abismo
E ao amor
E ao desamor
Num cantochão sem fim

Estás vendo?

SIBILA (conto)



* Escrito para Lanóia depois de alguma conversa sem sentido e o pq alguém tinha me pedido um conto que incluísse um pacto e meias sete oitavos.


Era uma noite fria do começo de junho. Meu carro havia parado no meio de um imenso nada, o celular não tinha sinal e eu esperava na estrada, sozinho, desempregado, falido e mal pago. Depois de quinze minutos de raiva e recriminação, parei de pensar e apenas esperei. Preparava-me para desistir daquela tolice, quando Sibila surgiu das sombras e ficou um momento imóvel, a silhueta recortada contra o céu.

Nenhuma luz brilhava além do clarão mortiço da lua minguante que delineava as curvas que eu conhecia bem. Estava na mesma encruzilhada onde dez anos atrás eu a invoquei pela primeira vez.

— Pontualidade. Gosto disso num homem, especialmente quando ele é meu.
Meu coração começou a bater tão forte que meu peito doeu. Tive esperança de que ela não viesse. A saia balançava suavemente, respondendo aos movimentos do vento, mas ela não se afastava do ponto onde as estradas se encontravam. Atravessei a distância que nos separava tremendo, enquanto Sibila me saudava com um aceno e uma rajada de chuva fina e gelada, um truque bem típico dela.

— Você não me deixou muitas escolhas, deixou?
Sempre que pensam em seus demônios, as pessoas pensam em calor. Eu penso em frio, mas tinha esquecido que, ao voltar àquela encruzilhada, sentiria muito frio todo o tempo e não só pelo clima.

— Não reclame. Foram dez anos felizes que te dei. Uma família bonita, bom trabalho, grana. Tudo que me pediu, sem tirar nem pôr.

— Você se esqueceu de dizer que me tiraria tudo, assim.

Ela sorriu quando me aproximei e abriu os braços.

— Vem fácil, vai fácil. Você sabe que não sou nenhum anjo.

A pálida luz da lua brilhando em seu rosto produziu o resultado de sempre: uma quebra na linha de pensamentos infelizes. Aquela mulher era uma festa para meus olhos. Sorri, esquecido por um momento da razão do reencontro.Ela sorriu também, antes de me envolver num abraço, antes que eu me perdesse em seu perfume, antes do beijo. Era uma velha amiga que, com o passar dos anos, havia se tornado inimiga, mais uma na imensa lista de amigos a quem eu havia traído. Uma das muitas pessoas dedicadas a arruinar minha vida.
— Tá, sou seu, mas deixe minha família em paz. Eles não te devem nada.

Ela sorria enquanto deslizava a unha afiada e vermelha pelo meu rosto, deixando uma trilha de sangue. — Deixo. — Lambeu o sangue suavemente.

— Vamos terminar logo com isso, então.

Ela tirou o vestido e ficou ali, no meio da estrada, vestindo apenas suas meias sete oitavos e os sapatos de saltos intermináveis. O tempo passava denso e escuro. Fechei os olhos. Não precisava ver para saber que ela tinha uma tatuagem em forma de estrela na virilha, ou de como seus seios eram perfeitos. Na última vez, tudo me foi dado depois de um beijo. O beijo de agora seria o pagamento. Minha alma e tormentos menos suaves pela eternidade.

— Tic TAC tic TAC tic TAC... Vamos, querido. Tenho outras almas para tomar.
O tempo passava. Eu lutava para encontrar uma saída, mas não havia, a menos que fosse um bom exorcista. Desajeitado, beijei-lhe a tatuagem na virilha; ela contorceu o rosto num esgar de prazer, enquanto eu murmurava minhas últimas preces, as orações mais sentidas e verdadeiras que jamais fiz. Sibila gargalhou, ergueu-me pelo queixo e gritou alguma coisa que não pude entender, numa língua gemida, língua que já devia ser velha e esquecida antes que eu sonhasse em nascer; e, mesmo sem ter entendido o conteúdo das frases, senti meus pelos se eriçarem enquanto ela as dizia.

Antes do beijo final, ouvi um rosnado baixo, um desafio, vindo das margens da estrada, de onde surgiu uma figura negra e graciosa. Sibila largou meu queixo e disse algo suave e gentil à sombra escura e lhe estendeu a mão. A sombra respondeu com mais frases na língua morta e cravou os dentes no braço da minha bruxa, que cuspiu em sua direção.
Então, Sibila olhou para mim, e se eu duvidei por muito tempo que ela fosse o que dizia ser, agora tinha certeza: seus olhos vermelhos chisparam sobre mim, depois se torceu e se retorceu até virar algo que lembrava um gato, para desaparecer na noite. A sombra que viera em minha defesa desapareceu também e eu fiquei ali com o coração aos pulos.
Então, um ronco de motor à distância quebrou o encanto: um caminhão descia a estrada buzinando para o louco parado na encruzilhada. Caí no acostamento vendo o vermelho das luzes traseiras do caminhão, depois os insetos, depois as estrelas, depois mais nada. Corri para o carro, fechei os vidros e esperei por algum socorro.

Isso foi há uma semana. Sibila ainda vem à minha casa cobrar a dívida. Não aparece todas as noites, mas vem na maioria delas. Entra pela janela do banheiro e murmura coisas naquela língua estranha, desliza a língua pelo meu corpo e desaparece quando ouve o rosnar das sombras. Não sei o que fiz para merecer a ajuda, e egoísta e amedrontado, tento ser bom para que ela não suma.

Sabotagem (Rosa Cardoso)




Contei até dez e
Meio incerta
Disse não pro teu sorriso

Não quero mais no meu colo
Essa alma desabalada
Essa coisa quebrada
Esse desejo inacabado

Decidi

Flanávamos no meio dessa aurora
Tudo era baço menos teu sorriso

Não te contei?

Sei desfazer o laço
Bastaria cortar essa liga
Que tua língua tem
Que me fisga

Bastaria não pensar
Calar tua voz imaginada

Bastaria...

Eu sei

Desfazer o laço
Fugir desse abraço
Contar até dez
Até cem
Até...

Que teu sorriso
Desata a ponta
Noutro canto
E vem outra noite
Outro verso
Outro encanto
E esse fado
Fiado em desertos

Os fios desse estofo me distraem
Embaraço os dedos nos teus
Risco tuas costas
Desenho teu nome
Sorrio
E fico
Enovelada
Enroscada
Enrascada
Engasgada

Traçando mapas para o nada
Perdida e enredada

Não quero contar mais nada
Confesso às minhas asas

Aquelas que dormem bem ali
Presas por teus alfinetes na almofada




10 de out. de 2016

tic tac tic tac


tic tac tic tac





quando cheguei naquele ocaso

por acaso atrás do tempo, do siso

um vento torto encapetou minhas velas

bem naquela hora que dizem ser mágica

afoguei-me nos teus olhos



vim para acalmar tempestades

alisar os mares em que cismas

soprar a neblina dos sofismas

não fiz nada.

Assim, sem querer, morri.



era quase noite

nuvens magenta se arrastavam

minha nau aportava em teus olhos insones

tu chamaste e eu corri

desastrada tropecei

e caímos enredados

abraçados nas promessas



tantas!

doidas!

imensas!



queria salvar-te e soçobrei

danem-se! Minhas culpas e intenções enfermas.



era tão tarde, ninguém viu

a mãe terra seguiu girando em seu fuso

gamos-rei vagueavam órfãos

vagávamos também atrás do tempo, tempo que vinha

tempo que foi sem ter sido



tic tac tic tac



beijávamos dias a fio

enfastiados dessa tarde inteira

desse acaso sem fim

fechávamos os olhos mudos

fugíamos da luz

driblávamos a escuridão



a lua escorregava sem pressa

e chegava quando dormias

perdido e desabado na noite que caía

sorrias dentro dos espelhos



avessa e cansada entrevia futuros

visagens inúteis



morri nos teus olhos numa tarde qualquer

beijei teu sorriso que o breu comia

ele partiu-se

cacos de riso tilintam pelos cantos

guardados na antessala vazia



a luz respinga em mim

pinta negrumes dissonantes

poemas rendados na pele nua

sarraceno perdido




a noite cai sem cuidado
a lua pesa sobre nuvens
enquanto me desfaço

o sorriso desaba num canto
e eu me arrasto
na alquimia dos desastres

a malha dessa armadura
sempre desfia
quando todos ficam do outro lado da porta

a espada quieta e queda
a armadura esgarçada
as asas quebradas

eu sei

é só fechar os olhos
e ouvir a canção


em que recitas todos os pecados
grandes e pequenas máculas
numa fila estupenda

a tua sombra guardada
a garganta embargada

eu sei. eu sempre sei.
é só fechar os olhos e
ouvir a canção
aquela ária sem fim


.

Acordei



Acordei. Meus olhos aos poucos se habituando ao lusco-fusco daquele fim de tarde, fim de domingo, fim de um sono de dois dias. Das janelas do quarto de paredes nuas eu podia ver a chuva caindo. Faz calor, apesar da chuva, um calor sufocante. Ouço o som da televisão ligada no outro apartamento, algumas vozes abafadas e o tilintar da chuva na cobertura a garagem. O telefone toca e eu tateio tonta em busca dele. Atendo. Não morri afinal. 

– Alô.

Minha voz me parece surpreendentemente firme.

– Oi. Esqueceu?

– De que?

Pergunto enquanto levanto meio trôpega e nua.

– De mim.

– Parece que sim.

– Vem me ver?

– Pode ser.

– Quero te ver.

– Sei que quer. Apareço depois.

Desligo sem esperar resposta. Lá fora tudo me parece calmo e ameno como a paisagem de um filme ou de uma fotografia antiga. A chuva parece fresca. Nua e tonta, caminho pelo apartamento abafado e mortiço. O calor torna meus movimentos ainda mais pesados. O telefone toca de novo. Deixo tocar. Olho para a cartela de comprimidos vazia, para a meia garrafa de martíni e penso que devia ter calculado melhor. Não estou mal e também não estou bem. Meu sorriso refletido no espelho parece quase convincente, pareço calma e tranquila, nada em mim diz: “tome conta de mim” ao contrário pareço pronta para cuidar de tudo e todos. O telefone toca e eu ignoro. Um banho rápido e me visto rapidamente também. Camiseta branca, minissaia, tênis, algum dinheiro no bolso e nada mais. A cidade parece vazia e estranha, quase tão vazia e estranha quanto eu. Caminho sem pressa através da chuva fina, quase invisível. Preciso andar para afastar o torpor que a mistura de Martíni e comprimidos tinham deixado. Era quase engraçado, não morri, mas dormi por dois dias e ninguém notou, nem ele. Toco a campainha. Ele abre a porta sorrindo e sem falar me beija. Não penso,não falo,deixo-me beijar, deixo-me levar. Não morri. Ele nem percebe meu torpor, meu vazio.Percebe?

♂♀