15 de fev. de 2024

desatino





distraída
na pedra fria

caída
na chuva

atos

todos falhos

o lobo sorri
escondendo os dentes
eu sorrio
desvairada

cortada ao meio
lacerada

o frio escorregando pelas entranhas

descia pela chão
em arabescos


Poema de Rosa Cardoso

banquete






no quarto o lobo espera.
os olhos, fitos na porta,
brilham.
antecipando o prazer.

na sala, a moça treme,
os olhos, fitos na porta,
brilham.
antevendo as presas.

no quarto, o lobo brinca.
os olhos, fitos no vermelho,
brilham.
devorando a carne branca.

no quarto, a moça morre.
os olhos, fitos no vermelho,
brilham.
implorando uma última mordida.


Rosa Cardoso

Parca




Alguém vaticinou
em eras perdidas,
entre sonhos e
quimeras ,
entre uma volta e outra
do fuso
que não nos veríamos jamais.

Trapaceiro decidi
...vou vendado

fecha os olhos
o vaticínio se mantém
e você não terá me visto
nem eu também

pronto
problema resolvido
sucesso garantido
o resto era acessório

tua pele e a minha
tem um mapa
que conheço bem

....vou deixar escritas
Instruções
Em braile
gravadas na pedra

responde,
e qualquer dia te pego...
numa parede qualquer.

Poema de Rosa Cardoso






A Natureza do Jogo






Sabe? Alguma coisa não fecha, alguma coisa não bate quando penso nela e, ao contrário do que pensa a maioria, conviver com a telepatia é um peso infernal. O que eu não entendo é como posso sentir falta do que não conheço? Não deveria doer. Afinal não era real ou era? A dor é incrivelmente real. Sinto falta das conversas. Do entendimento mágico que, provavelmente, nem acontecia. Dessa amizade quase palpável.

Tenho me sentido péssima. Penso nisso o tempo todo. Ninguém aparece para conversar até tarde da noite. Ainda assim quando chega a noite ligo essa máquina infernal e fico aqui banhada por essa luz espectral esperando por um sinal qualquer. Que não vem.

Estou longe pra me fazer ouvir, na verdade nem sei se quero mesmo falar com você. O que ficou foi a ideia que fiz de você. Inatacável, perfeita e inatingível. Como você agora. Ficamos no quase, na esfera das possibilidades e eu preciso ser sensata e deletar você da minha vida também. Eliminar essa lembrança de um momento que não existiu. Hoje vou tentar seguir em frente, um passo por vez.

Levanto da cama ligo o notebook e escolho uma playlist aleatória. Começo a ver as notificações e e-mails atrasados quando um anúncio aparece ao lado. É uma receita de bolo. Sorrio com o timing perfeito dessas máquinas. Resolvo cozinhar e vasculho a dispensa: farinha de trigo, bicarbonato de sódio, sal, cacau em pó, leite, limão, essência de baunilha, açúcar, açúcar mascavo, manteiga sem sal, ovos e chocolate meio amargo. Arrumei tudo sobre a mesa e comecei a trabalhar. Focada na receita.

Peneirei a farinha, o sal e o bicarbonato. Misturei o cacau e a água morna até ficar homogêneo. Misturei o buttermilk, a água e a essência de baunilha. Liguei a batedeira, bati a manteiga com os açúcares até ficar levinho. Com a batedeira ligada, adicionei um ovo de cada vez e bati até a massa ficar fofa. Adicionei à mistura de cacau com a batedeira em velocidade baixa, depois a mistura de farinha, alternando com a mistura de buttermilk, sendo três adições de farinha e duas de buttermilk, começando e terminando com a mistura de farinha.

Incorporei o chocolate ralado e joguei a mistura na forma para assar por mais ou menos 45 minutos. Foi quando percebi a música que eu estava acompanhando sem querer.
Pleased to meet you
Hope you guessed my name, mm yeah
But what's puzzling you
Is the nature of my game, mm mean it, get down
Tell me baby, what's my name
Tell me honey, can ya guess my name
Tell me baby, what's my name
I tell you one time, you're to blame

Olhei para trás e lá estava ela: Vésper. Era assim que ela se apresentava em nossos encontros virtuais. Eu sorri. Ela sorriu e sussurrou: Saudades sweetie?
Eu permaneci meio tonta e confusa e muda. Como? Você me chamou sweetie.
Chamei?
Huhum. Como?
Devil’s Cake, Simpathy for the devil?
Foi por acaso.
Nada , acredite, nada é por acaso!
Quer dizer que eu te invoquei?
Sim, invocou!
E você é o demônio ou um deles?
Não sweetie:EU SOU O PRÓPRIO.
Fiquei olhando para os seios que apontavam sob a camiseta de malha branca. Ela sorriu. Você realmente acha que alguém denominado “estrela da manhã” liga para gêneros?
Ela sentou numa das cadeiras cruzou as pernas longas e cantarolava: Pleased to meet you
Hope you guessed my name, oh yeah
(Who who)
But what's puzzling you
Is the nature of my game, oh yeah, get down, baby
(Who who, who who)
Pleased to meet you
Hope you guessed my name, oh yeah
But what's confusing you
Is just the nature of my game

hirta


.



Decidi
to me desligando
fechando a porta

devagar
sem olhar
meço meus passos

retesada
tensa
hirta

finjo um adeus

rija
firme
enérgica
intrépida
ríspida

decidi
to me desligando
fechando a porta

o vento cicia
palavras confusas

“tudo isso é passageiro
nós somos eternos”



Poema de Rosa Cardoso


.



14 de fev. de 2024

deslize







escorrego,
enquanto fujo
pela vereda
e resvalo
em teu olhar.

– suicida afável –

despenco entre
lembranças autóctones
aborígenes gentis
que me deslizam
em asas enlutadas


quase entendo
enquanto ouço
palavras risonhas.





poema de rosa cardoso


desencana





olha em volta,
não há premissas,
remissão
ou fada de plantão.

nessa noite,
saio armada;
salto alto,
batom,
mira e precisão.

– desvario –

não tem
docinho nenhum,

príncipe
nem mesmo
sapo escondido;

nenhum querubim
desvalido.

– desencana –

põe na conta:
o sábado tá perdido.

abduzido
por essa fada
desligada.
a que te desencantou.
.

(Rosa Cardoso)

avesso




Meu corpo é teu
Moro no abismo
Imersa em teu olhar

Meu desejo é teu
E alimenta essa voragem
Teu olhar me consome

Sigo desequilibrada
Sem norte
Sem rumo

Teus olhos
Teu desejo
Teu corpo

Sobra a alma essa desconhecida
Que se esconde no sorvedouro
Dos teus cataclismos

Poema de Rosa Cardoso

13 de fev. de 2024

Alquimia




Decantei
em longos,
sinuosos versos,
o veneno das tuas presas


Encorujei meu espírito
protegendo-me
das setas
e elas continuam
a procurar meu peito.


Rezou pra eu te esquecer?
Foi em vão...

Sigo zonza, insone,
vagueio pela cidade
envenenada e louca...


Poema de Rosa Cardoso

Medusa, Prometeu, totens e espelhos




















hoje pensei tanto nessa coisa doida
pensei no teu sorriso
sorri da tua voz


cansei de te ver
mas gostei de te sorrir
da nesga da janela
donde despenca esse céu

eu te chamo

doidivana mente

tempestuoso vento trás teu nome
e vens arrastado e sereno
contar dos nadas abissais

braços remotos falam de totens colossais
cabeças de Górgonas caem dos bolsos
recolho cacos no colo
acaricio teus cabelos


sorrimos e eu

desentendo


deslizo dedos tortos
pelo reverso desses medos

quietos e caros

roubei a égide de uma deusa
 tão doida quanto eu
numa tarde quieta de abril
para congelar sorrisos
prometeu empedrar paixões e terrores


Odisseu, Aquiles, Penélope, Zeus, todos prometeram

Afrodite te escondeu sob um manto fino


oblíquo tu desvias dessa defesa incerta,
ri das serpentes que invento,
abraça-me os joelhos
através dos espelhos em que me guardas
deslinda venenos
destrava portas

ilumina desencantos febris

Poema de Rosa Cardoso

12 de fev. de 2024

delicada apatia















ardilosamente
tua utopia
me invade

sem pressa
nem alarde
sutil e docemente

meu sono é pesado
medido e contado
torpor infindo
que me embala

delicada apatia
entranhada na pele



Poema de Rosa Cardoso

11 de fev. de 2024

inominável





ela ri comigo
desenhamos juntas
runas na pele nua

gemidos se erguem
cânticos de fauno e fada
ciciar sem nome

tecelã de mim
desfolho o mantra
dança de sonho

os poetas desdenham
minhas rimas internas
gostam de malabarismos

línguas incessantes
contar as sílabas
dez a cada manhã

diz uma das deusas
e que os nove te protejam
ergue tua capa

empunha a espada
cicia teus cantos
desenha tua runa na pele
defende mente, corpo e espírito
reza nosso verso sagrado

Poema de Rosa Cardoso