22 de out. de 2016

novenário torto



faz tanto tempo, meu pequeno
leio tuas entrelinhas gritadas
e me escondo nos entremeios

protegida pelos símbolos
escorrego na tua língua
uma imagem quieta e perdida
nessa retina cansada

há tantas nuvens, meu menino
e a chuva caindo
sobre teu sorriso de quem desentende
e se surpreende
com esses barcos desencontrados

a poesia,essa menina danada
trepada num galho
recita versos que caem no meu colo

enquanto durmo

recito teu novenário
feito de sorrisos distraídos e àvaros
sonhos de praia perdida

teus olhos sussurram
deslizam céu e mar
eu presto atenção

mão no queixo

soletrando pelo dia
tuas palavras avessas
construo barquinhos de papel
de versos esquecidos
que guardo bem na curva
perto da aurora


...aquela que não te dei
 
(rosa cardoso)

21 de out. de 2016

inerme


acusador,
teus olhos dançam
negrume iluminado que me prende

arame farpado

esplendor

desejo pagão

eu desacredito de tudo
acredito nos feitiços insana,
rosada e lunar
bebo contigo, anjo perdido
e corada aceito a embriaguez
dessas novenas afoitas

vinho sem mistura

feito foice arranca sinfonias
invade as certezas ,
deus-cego e destruído
abre as belas pétalas dessas verdades tortas
colhendo esses beijos natimortos
na vindima do inferno

taça florescente recheada de alma
temperada em pecados inermes

Bibelô trincado



Você não me vê
Parada na tua estante
Bibelô trincado
Vestida de delírio

Você não me vê
Sou um rabisco esquisito
Aquele borrão carmim
Eu sei

Fantasiada de beijo
Pareço cansada assim
Travestida em afago

Você não me vê
Mesmo que atravesse paredes
Apenas para esse arpejo
Eu sei

Vez por outra morro
Desisto
Desencarno

Noutras renasço
Na primeira nota da ária
Capitulina desse romance insano
Apareço na tua porta
Princesa nua, bruxa distraída
Deusa e dragão

Fico na ponta da língua
Da tua e da minha
Beirando abismos
Viro palavra não dita
Quase nascida
Verso esquecido
Deixo o passado
E fico por ser

Enuma elish...


havia a raiva

feito serpente

bicho ruim

pelos cantos

havia poder

deslindando o caos

dissecando tudo

havia o desejo

certezas vagas

chuva miúda

minha boca na sua

havia tua beleza errática

minhas culpas temáticas

teus sorrisos asmáticos

havia mil beijos esquecidos de se dar

eles beiravam o abismo

e voejam ao teu redor

não vê?

havia você

na tal caixa

que Pandora abriu

19 de out. de 2016

O escafandro e a borboleta



era bem tarde quando bateu na escotilha
o mar era profundo e vasto

eu vestia meu traje e fugia
hermeticamente refugiado
nas lembranças suaves

pessoas ,sentimentos,coisas,olhares
distantes e extintos
perdido nesse mar

meus olhos de escafandrista vagueiam
enquanto as asas dela se debatem
trazendo sopros ávaros

desejo de tornar a ver ou possuir
o passado que não volta

borboleteava na janela
hermética
mas não existe mais


Rosa Cardoso

17 de out. de 2016

Celofânica



Meus dedos cansados
Deslizam
Cordas imaginadas
Pendem sobre abismos

Tensas

Dedilho com cuidado
Velocidade de dobra
Desfolho sonhos apressados

Penso catecismos

Conselhos didáticos
Vagueiam pelas cercas
Em vôos celofânicos

Tudo vão

Recolho as asas
Imensas dentro do alambrado


Rosa Cardoso

16 de out. de 2016

fim de caso

Imagem:Stanislav Plutenko 

Abandonei a musa manca
Atolada no meu palavrório chocho
Pobre dama imortal!

Cortamos relações

Vagamos então
Fingindo não nos ver nesse charco
Ignoramos as nuvens
Mesmo quando chovem corações

Tortos
Acéfalos
Natimortos

Minha deusa manca afunda
Cria oratórios na lama
Brinca de Ofélia
Distraída e louca
Canta versos indecentes
Todos bárbaros!

Cortamos relações!

Não nos beijamos mais
Somos agora torturadas charlatãs
Comportadas santas
Mãos sobre o colo
Cruzamos as pernas bentas
Em mudas zangas