3 de mai. de 2017

rabisco desnudo




ainda ontem te vi
não era exatamente você
era teu nome
flutuando na claridade
salpicado de tormentas

ainda há pouco te vi
e estavas nu
não você, era teu nome
bailando ao vento
em desvario

ainda ontem te vi
e já nem doeu
teu nome vagava
belamente desnudo de você

não se apoquente
era só um nome que eu rabisco
nessas tardes lassas
em que morrem palavras
delicadas e nossas

ainda há pouco te vi e
corri para o abrigo de papel
fechei os olhos mas ainda ouvi
um eco perdido de avalanches mortas

eu secreto lenimentos corrosivos
sobre os liames da tua língua predatória
enquanto sigo lendo nas entrelinhas das ausências

1 de mai. de 2017

arestas


arestas


tuas letras cascateiam
despencam pelas arestas
vestidas de hecatombe

elas espreitam

vastas e vazias
as palavras ressoam

mortas e agourentas

são assovios no vento frio
fantasmas de acertos, erros e fados

no céu escuro as vozes troam
reboando sibilantes

relâmpagos alumiam instantes

“But don't play with me,
 'cause you're playing with fire”

partem-me a cabeça
nessa epifania esquisita

febre

milhares de cacos tilintam
minhas almas espargidas pelo chão

não escute o sonido

cobre os ouvidos
cerra teus olhos
trinca bem os dentes

e espera a treva





30 de abr. de 2017

fissura



“Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo, mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê.”




pequena fissura 

desfia a malha
remendo


     uma 

                     duas 
                                    mil vezes

misteriosa e confusa

teia de seixos
que me enrola

a fissura eu escondo

e me enreda
sob o disfarce de um sorriso

             uma 

                         duas   
                                    mil vezes

escrevo bilhetes plenos

vastos de segredos claros
de novo e de novo
amasso o papel

bolas compactas
rolam nos cantos do quarto



*citação Caio Fernando Abreu