Guerreiros nascem com esse dom, pelo menos é o que dizem, vez por outra, depois
de um beijo ou de um gole de chá os mestres que se acercam de mim. Eles parecem
sempre muito preocupados e distraídos com as filigranas que minha língua faz
para dizer que devo buscar outra ocupação, pois não sou uma guerreira boa o
bastante para espreitar a vida à espera do que ela tiver pra dar. Quando falo em
língua me refiro às duas: o órgão físico e ao uso que faço das palavras, mas
creio que depois que paro de falar eles pensam apenas nos desenhos úmidos que
traço em suas peles de sábios.
Eu espreito o que acho
interessante, em geral observo minha presa desinteressada do que farei com ele
ou do que fará comigo. Nunca me notam mesmo até o momento final. Sou neutra,
inócua, algo parecido com uma camareira de hotel, um garçom, uma enfermeira,
percebem que há ali uma pessoa, sem registrar direito o fato, enquanto eu os
desenho para mais tarde pintá-los ou pô-los num conto ou poema. Muito raramente me alimento deles. Sou inofensiva,
lasciva e preguiçosa. Como biscoitos
molhados no leite e observo a rua quando o trabalho me entedia.
Hoje acordei dos meus sonhos intranquilos e depois de conferir
que não haviam (ainda) brotado anteninhas em minha testa, pus meus pés
descalços a caminho da cozinha, meus gatos Gregor e Samsa embaraçavam-me os
passos, olhei no armário e a ração dos pobres canalhas havia acabado, enchi
então um copo de leite gelado para mim, um prato de biscoitos de chocolate e
dois pires para eles que me olharam rancorosos. Era tarde, passava das cinco, a
luz do dia que eu não vi passar se dissolvia numas sombras meio tristonhas e eu
pensava que assim sem sol na pele, de nada adiantava o leite. Como um biscoito
e esqueço da minha provável carência de vitamina D.
Já é noite quando o caminhão de mudanças chega e a rua, antes
vazia, se enche de ruídos. Caixas deixam a carroceria e depois de terem sido
conferidas na lista que um dos homens examina, talvez o motorista, talvez o
dono da casa. Como um biscoito, beberico o leite, faço um cafuné em Samsa que
saltou para o peitoril da janela e decido que deve ser o dono. Ele chegou um
pouco depois do caminhão, armado de sua lista e não tinha saído de dentro dele,
pra dizer a verdade ele parece ter brotado no chão, não o vi chegar. Meus
biscoitos estavam na metade quando o veículo barulhento sumiu na noite sem lua.
Gregor caçava uma barata e Samsa ronronava em meu colo, tentando me lembrar que
leite e biscoitos eram gostosos, mas que uma ração sabor atum seria ainda
melhor. O dono, meu novo vizinho, estava parado na calçada, mãos nos bolsos e
parecia espreitar também, esquadrinhando a rua. Diferente de mim ele parecia
perigoso, olhou para as janelas, seu olhar deslizava cuidadosamente de quadrado
para quadrado, até que parou na minha. Samsa abespinhou-se, saltou do meu colo
e eu, vítima de um instinto primitivo saltei também. Mortalmente assustada. São
os riscos de se ficar à espreita assim, desarmada.
Rosa Cardoso
Rosa Cardoso
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