16 de ago. de 2018

SILÊNCIO




Os longos silêncios que pareciam feitos dos tentáculos de algum animal mítico. Eram eles que mais a incomodavam. Silêncios cheios de um vazio imensurável e tão vazios que faziam seus ossos doerem. O silêncio invadia todos os mundos em que ela navegava e até as almas andavam caladas, nenhum sussurro a seguia pelos cantos frios da velha casa escura, nenhuma sombra se escondia nas gretas.

Os remédios a tornavam surda a tudo que fosse incomum ou interessante. Ela suspirou e empilhou as panelas, guardou cada prato e copo em seus devidos lugares e depois voltou à massa de pão que descansava sobre a mesa já enfarinhada, onde sovou até que tudo ficasse liso e perfeito, sovou até que os reservatórios de medo estivessem vazios e ocos como a casa estava, sovou até que os nós dos dedos doessem. Depois colocou a massa para descansar e os pensamentos voltaram enquanto ela sentava quieta sem nada mais a fazer além de pensar no marido distante ou lembrar de como eram os movimentos do bebê sob sua tenda de pele.

O bebê tinha sido sua esperança de que o vazio desaparecesse. Na verdade, ele se tornara seu único refúgio a única coisa que tinha se permitido imaginar, a única esperança de futuro, mas agora não havia nada, apenas a lembrança daquela boneca morta que tinha uma pele azul de fada.

Os remédios vieram depois, caixas tarjadas de vermelho e preto que a faziam outra, talvez alguém mais aceitável, alguém que pudessem salvar.O céu estava claro e ela ergueu o rosto, estendeu seu espírito até a entrada da floresta onde sabia que a lua se espraiava e quase pôde ouvir os sussurros enrugados dos espíritos perdidos, podia senti-los agora, mais próximos do que em qualquer outro momento anterior.

Voltou rápido e agradeceu por estar sozinha. Não havia perigo de ser vista imaginando. Foi deitar e da cama ouviu quando um dos espíritos abandonados derrubou as panelas, pensou vagamente que ratos eram mais fáceis de controlar do que espíritos com senso de humor duvidoso.

Não tomou os remédios, mas empilhou as pílulas num canto do criado mudo. Olhou um pouco para elas , depois vestiu a camisola, apagou as luzes e caminhou no escuro, quando chegou à cozinha o espírito arranhava a porta e ela bocejou enquanto refazia o intrincado equilíbrio das panelas.

Lá fora o vento zumbia nas árvores, o ar se tornava subitamente gelado e os sussurros quase se tornaram uma palavra. Pensou vagamente no quanto os espíritos podem ser aborrecidos quando eram ignorados, despiu a camisola e enfiou-se nas cobertas. Sonhou que amamentava a pequena fada e que ambas tinham asas.

2 comentários: