MEKARE E O OCEANO
Memória, Exílio e Colonialismo nas Crônicas Vampirescas
Há livros que nos leem de volta. Queen of the Damned, de Anne Rice, é um desses.
Entre as muitas vozes que atravessam suas páginas, há duas que me perseguem há anos: Mekare e Maharet — irmãs imortais, espelhos divididos de um mesmo arquétipo feminino.
Elas atravessam milênios, oceanos, impérios. Carregam consigo a memória do mundo e o fardo do exílio.
Em Queen of the Damned, Rice as lança ao mar em caixões de pedra, arrastadas por jangadas frágeis — um gesto mítico, histórico e simbólico. É o nascimento do exílio como metáfora: o corpo feminino lançado às correntes do tempo.
Neste mergulho, sigo as rotas dessas irmãs, entre a pedra e a água, entre o Velho e o Novo Mundo.
O EXÍLIO DAS IRMÃS
“Fomos colocadas em caixões de pedra. Um foi levado para o leste, o outro para o oeste.”
Saqqara — a necrópole que guarda os limiares entre o vivo e o morto — torna-se o ponto de partida. É ali que a memória se sela.
A escolha de Rice não é casual: é nas areias do Egito que a história e o mito se entrelaçam pela primeira vez.
Maharet e o Leste
Maharet deriva para o leste, devolvida ao ventre do Oceano Índico. Seu caixão se abre em alto-mar: renascimento.
A travessia é curta, mas simbólica. A água devolve-lhe a vida, e com ela, a memória.
Maharet reaprende o mundo pelo corpo — não mais como sacerdotisa, mas como mulher que recorda e observa.
Carrega em si a consciência da irmã perdida, como se o sangue guardasse a saudade da metade exilada.
Mekare e o Oeste
Mekare, lançada ao oeste, mergulha em outra travessia — mais longa, mais brutal.
O Atlântico a engole, a isola, a refaz. Seja nas profundezas ou nas margens de um continente virgem, ela é tragada pela geografia do esquecimento.
Duas hipóteses se desenham:
O Caixão Afundado: o oceano a aprisiona por séculos. Útero e tumba. O silêncio absoluto gera loucura mística e a transforma em força pura.
A Travessia em Terra Firme: a jangada encalha. Mekare caminha. Meses, séculos, eras.
Pisa em terras onde povos originários — Tupi-Guarani, Jê, Aruak, Cariri — já teciam o mundo com canto e corpo.
Ali, ela se torna andarilha arcaica, testemunha de uma memória anterior ao império.
Seu silêncio não é ausência: é absorção. É escuta da terra e de seus deuses esquecidos.
Em ambas, o oceano é o mediador do sagrado. A travessia não é geográfica — é espiritual.
O OLHAR EUROCÊNTRICO
Quando Maharet reencontra Mekare, é pela lente do Velho Mundo.
A narrativa, tão bela quanto cruel, traduz a irmã como ausência: a louca, a perdida, a selvagem.
O “Novo Mundo” é visto como espaço de solidão e primitivismo — a velha fábula colonial disfarçada em mito gótico.
Mas o que Maharet chama de esquecimento é outra forma de memória.
Mekare não fala a língua do império.
Ela é corpo, terra e sangue — e isso basta.
Maharet é o arquivo; Mekare, a experiência.
Uma mede, a outra sente.
Uma escreve, a outra encarna.
Rice dramatiza o olhar colonial, deixando-o ruir em si mesmo.
O poder de Mekare está no que não pode ser traduzido.
ENTRE CRÍTICA E ECO
Rice trabalha em tensão delicada.
Consciente ou não, Maharet repete o olhar colonial, enquanto Mekare encarna o retorno do reprimido — a natureza, o corpo, o feminino.
O Velho Mundo tenta enterrar a memória; o Novo Mundo devolve-a intacta, vingativa, carregada de vida.
O oceano é o mediador dessa vingança — corrente que separa e une, como o sangue entre irmãs.
Rice não escreve um tratado anticolonial, mas um mito que o desvela.
O colonialismo, em sua narrativa, é uma maldição simbólica: o poder de apagar histórias — e o retorno inevitável do que foi silenciado.
Mekare emerge como esse retorno.
Não fala, mas age.
Não narra, mas testemunha.
Sua vingança é o eco da terra e dos povos apagados do mapa.
CONCLUSÃO
Mekare é mais que uma personagem: é uma lembrança viva.
É o corpo da terra que se recusa a ser esquecido.
Afundada ou caminhante, ela transforma exílio em gestação — o silêncio em linguagem.
O que o império tenta traduzir, ela encarna.
O que o Velho Mundo tenta enterrar, ela devolve.
O oceano que a carregou é também sua escritura — vasta, indomada, feminina.
Nele, Mekare é tanto naufrágio quanto lembrança.
É a memória que o mar guarda no sal e no sangue, e que o tempo jamais conseguirá apagar.