31 de ago. de 2017

Lira


O grupo cortava a noite fria numa formação compacta. Risos,afagos e beijos alternavam-se com doses fartas de cinismo e sarcasmo. Dois deles pareciam mais eufóricos, embora rissem e falassem num tom mais baixo. Minha menina os observava séria e calada demais. No princípio era apenas o trabalho de sempre: Observar, registrar e inspirar  Mas então algo mudou e passou a se concentrar naquele mortal específico. Acompanhava ansiosamente seus passos.As moiras haviam me alertado para o fato de que ela já havia consultado o destino daquele poeta e pelo menos duas vezes tinha perguntado sobre as interseções e em como poderia mudar esse ou aquele traçado. A obsessão dela estava desequilibrando o grupo. Tália distraia-se em imitar os trejeitos do rapaz. Terpsícore não dançava entretida em observar o homenzinho que tanto interessava sua irmã. A serena Polímnia cochichava preocupada com a disciplinada Melpômene. Euterpe que parecia entender a obsessão apenas sorria. Calíope, mais recolhida e pensativa, era quem mais se preocupava. Calíope nunca tinha visto Erato tão impaciente e ao mesmo tempo tão atenta a um mortal, até a distraída Urânia sempre distraída em medir o orbe com seu compasso, percebeu a estranha atitude da irmã. Todas agora seguiam o mortal ao mesmo tempo em que esperavam para ver o que ele faria. O sorriso era largo e radiante. Daqueles que não deixam esconder que algo muito bom havia ocorrido. Soubessem, então, que uns dias antes aquele rosto era fechado, que estava sempre cerrado e preocupado, que os olhos vasculharam o chão enquanto a alma buscava o céu; soubessem o quanto a monotonia e a tristeza incomodavam… Mas não contavam mais os dias de tristeza, de preocupação e solidão compulsivas. O que era uma vida de noite comparada àquela noite de luzes? O sorriso era pouco, e não expressava tanto assim. Ah... os dias que viriam pela frente é que diriam mais, e muito mais. Conhecera Rebeca da forma mais casual, apaixonaram-se num esbarrão e trocaram beijos por telepatia. Em dois dias conversavam como se fossem amantes de longa data; amantes sim, porque já segredam o status de apaixonados em cada pequeno movimento. Ele era Augusto, e ela Rebeca, e ambos se sabiam seus. O terceiro encontro foi fatal. O que era apenas conversas e olhares se derramou no jantar, na casa de mulher solteira e decidida. Foi beijo tragado em vinho e sexo posto à mesa. Carícias e promessas que não precisavam ser cumpridas que duraram até o café da manhã, quando saiu de dentro dela para sorrir aquele sorriso que abriu esta história. Da porta à rua com lembranças de beijo e aquela necessidade louca de encontrar um pedaço de papel. Precisava escrever o que aconteceu , o que havia em Rebeca e como o mundo ganhara cor. Mas, engraçado – não conseguia puxar a inspiração. Os passos batiam contra a calçada sem fazer eco algum e aquele monte de sensações pareciam bastar. Abriu a porta de casa e a caneta não o chamou a escrever; pelo contrário! Decidiu que o dia estava bonito demais para perder tempo na folha branca. Tomou um longo banho, vestiu-se, ligou para uma amiga fiel e abandonou à escuridão do esquecimento o instrumento que o diferenciava aos olhos dos deuses.